Foco. Preciso de foco. Não é um
terremoto, nem um ataque de um atirador
enlouquecido, nem um acidente nuclear,
é? Na escala de desastres, não é um dos
maiores. Não é dos maiores. Um dia
espero que eu me lembre deste momento,
ria e pense: “Ha, ha, como fui boba em me
preocupar...”
Para, Poppy. Nem tenta. Não estou
rindo. Na verdade, estou passando mal.
Ando às cegas pelo salão do hotel, com o
coração disparado, procurando sem
sucesso no tapete estampado azul, atrás de
cadeiras douradas, debaixo de
guardanapos de papel usados, em lugares
onde ele nem poderia estar.
Eu o perdi. A única coisa no mundo
que eu não poderia perder. Meu anel de
noivado.
Dizer que esse é um anel especial não
chega nem perto da verdade. Ele está na
família de Magnus há três gerações. É
uma esmeralda espetacular com dois
diamantes, e Magnus teve que tirá-lo de
um cofre exclusivo no banco antes de me
pedir em casamento. Eu tenho o maior
cuidado com ele todo santo dia há três
meses, coloco-o religiosamente num prato
de porcelana à noite, tateio para garantir
que está no meu dedo a cada trinta
segundos... E agora, no dia em que os pais
dele vêm dos Estados Unidos, eu o perdi.
Logo hoje.
Os professores Antony Tavish e
Wanda Brook-Tavish estão, neste exato
momento, voltando de um período
sabático de seis meses em Chicago.
Consigo imaginá-los agora, comendo
amendoins torrados com mel e lendo
artigos acadêmicos em seus Kindles
idênticos. Sinceramente, não sei qual dos
dois é mais intimidante.
Ele. Ele é tão sarcástico.
Não, ela. Com aquele cabelo todo
encaracolado e sempre perguntando o que
você acha sobre o feminismo.
Certo, os dois são terrivelmente
apavorantes. E vão pousar daqui a mais
ou menos uma hora, e é claro que vão
querer ver o anel...
Não. Nada de surtar, Poppy. Continua
otimista. Só preciso pensar na situação
por um ângulo diferente. Como... O que
Poirot faria? Poirot não correria de um
lado para o outro em pânico. Ele manteria
a calma e usaria as pequenas células
cinzentas para se lembrar de algum
pequeno e crucial detalhe que seria a pista
para resolver tudo.
Fecho os olhos com força. Pequenas
células cinzentas. Vamos. Deem o melhor
de si.
O problema é que não tenho certeza se
Poirot tomou três copos de champanhe
rosé e um mojito antes de solucionar o
assassinato no Expresso do Oriente.
— Senhorita?
Uma senhora grisalha da equipe de
limpeza está tentando passar por mim com
um aspirador e quase dou um gritinho de
pânico. Já estão aspirando o salão? E se
aspirarem o anel?
— Me desculpa. — Eu seguro no
ombro azul de náilon dela. — Pode me
dar só mais cinco minutos para procurar
antes que você comece a aspirar?
— Ainda está procurando o seu anel?
— Ela balança a cabeça com
desconfiança, mas logo sorri. — Acho
que você vai encontrar em casa. Deve ter
ficado lá o tempo todo!
— Talvez. — Eu me forço a concordar
com educação, embora sinta vontade de
gritar: “Não sou tão burra!”
Do outro lado do salão vejo outra
faxineira jogando migalhas de cupcake e
guardanapos de papel amassados num
saco de lixo preto. Ela não está prestando
nenhuma atenção. Será que não estava me
escutando direito?
— Com licença! — Minha voz soa
estridente quando corro em direção a ela.
— Está procurando o meu anel, não está?
— Nem sinal dele até agora, meu anjo.
— A mulher joga outro montinho de
detritos no saco de lixo sem nem olhar
direito.
— Cuidado! — Eu agarro os
guardanapos e os tiro do saco, tateando
um por um em busca de algo duro, sem
ligar de estar ficando com cobertura de
buttercream nas mãos.
— Querida, estou tentando limpar aqui.
— A faxineira pega os guardanapos das
minhas mãos. — Olha a bagunça que você
está fazendo!
— Eu sei, eu sei. Me desculpa. —
Pego as forminhas de cupcake que
derrubei no chão. — Mas você não está
entendendo. Se eu não encontrar o anel,
estou morta.
Quero agarrar o saco de lixo e fazer
uma perícia forense no conteúdo usando
pinças. Quero colocar fita adesiva ao
redor do salão inteiro e declará-lo como
local de um crime. Tem que estar aqui,
tem que estar.
A não ser que ainda esteja com alguém.
É a única outra possibilidade à qual estou
me apegando. Uma das minhas amigas
ainda está com ele no dedo e, de alguma
maneira, não reparou. Talvez tenha
deslizado para dentro de uma bolsa...
Talvez tenha caído num bolso... Ou esteja
preso nas linhas do casaco de alguém...
As possibilidades na minha cabeça estão
ficando cada vez mais absurdas, mas não
consigo abrir mão delas.
— Já tentou o toalete? — A mulher
desvia para passar por mim.
É claro que tentei o banheiro.
Verifiquei, engatinhando, cada cabine. E
todas as pias. Duas vezes. Tentei
persuadir o concierge a fechar o banheiro
para examinar todos os canos das pias,
mas ele não aceitou. Disse que seria
diferente se eu soubesse de fato que o anel
tinha sido perdido ali e que tinha certeza
de que a polícia concordaria com ele, e
será que eu podia me afastar da mesa pois
havia pessoas esperando?
A polícia. Rá. Achei que ela viria
correndo nas viaturas assim que liguei, em
vez de me dizer para ir até a delegacia
fazer um boletim de ocorrência. Não tenho
tempo para fazer um boletim de
ocorrência! Preciso encontrar meu anel!
Volto correndo para a mesa circular
onde estávamos sentados naquela tarde e
engatinho para baixo dela, apalpando o
carpete de novo. Como pude deixar isso
acontecer? Como pude ser tão burra?
Foi ideia da minha velha amiga de
escola, Natasha, comprar ingressos para o
Chá com Champanhe Marie Curie. Ela
não pôde ir ao meu fim de semana de
despedida de solteira no spa, então isso
foi uma espécie de substituição.
Estávamos em oito à mesa, todas alegres
tomando champanhe e comendo cupcakes,
e foi um pouco antes do início do sorteio
que alguém disse:
— Então, Poppy, deixa a gente ver
esse anel.
Agora nem consigo lembrar quem foi.
Annalise, talvez? Annalise foi minha
colega de faculdade e agora trabalhamos
juntas na First Fit Physio com Ruby, que
também era da nossa faculdade de
fisioterapia. Ruby também estava no chá,
mas não tenho certeza se ela experimentou
o anel. Experimentou?
Não consigo acreditar no quanto sou
péssima nisso. Como posso bancar o
Poirot se nem consigo me lembrar do
básico? Na verdade, parece que todo
mundo estava experimentando o anel:
Natasha, Clare e Emily (velhas amigas de
escola de Taunton), Lucinda (a
cerimonialista do meu casamento, que
acabou virando minha amiga), a assistente
dela, Clemency, e Ruby e Annalise (não
apenas amigas de faculdade e colegas,
mas minhas duas melhores amigas, que
também vão ser minhas damas de honra).
Eu admito: estava maravilhada com
tanta admiração. Ainda não consigo
acreditar que uma coisa tão grandiosa e
linda é minha. O fato é que ainda não
consigo acreditar em nada do que
aconteceu. Estou noiva! Eu, Poppy Wyatt.
De um palestrante universitário alto e
bonito que escreveu um livro e até
apareceu na TV. Apenas seis meses atrás
minha vida amorosa era desastrosa. Nada
significativo havia acontecido durante um
ano e eu estava relutantemente decidindo
que deveria dar uma segunda chance ao
cara com mau hálito do site de
relacionamentos... E agora faltam só dez
dias para o meu casamento! Acordo todos
os dias de manhã, olho para as costas
macias e sardentas de Magnus ainda
dormindo e penso: “Meu noivo, o doutor
Magnus Tavish, membro do King’s
College de London”,1 e quase nem
acredito. Depois me viro e olho para o
anel, brilhando luxuoso na minha mesa de
cabeceira, e, mais uma vez, quase nem
acredito.
O que Magnus vai dizer?
Meu estômago se contrai e engulo em
seco. Não. Não pense nisso. Vamos,
pequenas células cinzentas. Ao trabalho.
Eu lembro que Clare ficou muito tempo
usando o anel. Ela não queria tirá-lo. E
então Natasha começou a puxar o anel e
dizer: “Minha vez, minha vez!” E me
lembro de ter avisado a ela: “Com
delicadeza!”
O que quero dizer é que não fui
irresponsável. Observei o anel com
cuidado enquanto ele passava de mão em
mão.
Mas de repente minha atenção se
dividiu, porque começaram os sorteios, e
os prêmios eram fantásticos. Uma semana
numa villa italiana, um corte de cabelo
num salão de luxo, um voucher para a loja
Harvey Nichols... O salão estava uma
loucura com as pessoas pegando bilhetes
e com números sendo anunciados no palco
e mulheres pulando e gritando: “Eu!”
E foi nesse momento que eu errei. O
momento de dar nó no estômago e pelo
qual me arrependo. Se eu pudesse voltar
no tempo, seria nessa hora que eu andaria
até mim e diria com severidade: “Poppy,
prioridades.”
Mas a gente não percebe, não é? O
momento surge, a gente comete o erro
terrível e ele acaba, e a chance de fazer
qualquer coisa já era.
O que aconteceu foi que Clare ganhou
ingressos para Wimbledon no sorteio.
Adoro Clare de paixão, mas ela sempre
foi meio tímida. Ela não se levantou e
gritou “Eu! Woo-hoo!” o mais alto que
pôde, só ergueu a mão alguns centímetros.
Até mesmo a gente, da mesa dela, não
percebeu que ela tinha ganhado.
Assim que me dei conta de que Clare
estava sacudindo um bilhete sorteado no
ar, a apresentadora no palco disse:
— Acho que vamos sortear de novo, se
ninguém ganhou...
— Grita! — Cutuquei Clare e sacudi a
mão freneticamente. — Aqui! Quem
ganhou está aqui!
— E o novo número é... 4-4-0-3.
Para minha completa surpresa, uma
garota de cabelos escuros do outro lado
do salão começou a gritar e a sacudir um
bilhete.
— Ela não ganhou! — gritei com
indignação. — Você ganhou.
— Não importa. — Clare estava se
encolhendo.
— É claro que importa! — berrei
antes de conseguir me controlar, e todo
mundo da mesa começou a rir.
— Vai, Poppy! — gritou Natasha. —
Vai, Cavaleira Branca! Resolve isso aí!
— Vai, Cavaleirinha!
É uma piada antiga. Só porque houve
um incidente na escola, no qual fiz um
abaixo-assinado para salvar os hamsters,
todo mundo começou a me chamar de
Cavaleira Branca. Ou só Cavaleirinha,
para abreviar. Meu suposto lema era: “É
claro que importa!”2
Enfim. Basta dizer que em dois minutos
eu estava no palco com a garota de
cabelos escuros, discutindo com a
apresentadora sobre o bilhete da minha
amiga ser mais válido do que o dela.
Agora eu sei que nunca deveria ter
saído da mesa. Nunca deveria ter
abandonado o anel, nem por um segundo.
Posso ver como isso foi imbecil. Mas,
para minha defesa, eu não sabia que o
alarme de incêndio ia disparar, sabia?
Foi tão surreal. Num minuto,
estávamos sentados num alegre chá com
champanhe. No seguinte, uma sirene
estava soando e o pandemônio começou,
com todo mundo ficando de pé e correndo
em direção às saídas. Pude ver Annalise,
Ruby e as outras pegando as bolsas e
correndo para os fundos do salão. Um
homem de terno foi até o palco e começou
a me empurrar e a empurrar a garota de
cabelos escuros e a apresentadora para
uma porta lateral, sem nos deixar ir na
direção contrária. “Sua segurança é a
prioridade”, ele ficava repetindo.3
Mesmo naquele momento, não fiquei
preocupada. Não achei que o anel tivesse
desaparecido. Supus que uma das minhas
amigas estivesse com ele e que eu as
encontraria na rua e então o pegaria de
volta.
Do lado de fora estava um caos, é
claro. Além do nosso chá, tinha uma
grande conferência de negócios
acontecendo no hotel, e todos os
participantes estavam saindo para a rua
por diferentes portas, e os funcionários
tentavam dar avisos usando megafones, e
os alarmes dos carros haviam disparado,
e demorei séculos só para encontrar
Natasha e Clare na confusão.
— Vocês estão com o anel? —
perguntei no mesmo instante, tentando não
falar em tom de acusação. — Com quem
está?
As duas fizeram cara de quem não
sabia do que eu estava falando.
— Não sei. — Natasha deu de ombros.
— Não estava com Annalise?
Então voltei para o meio da multidão
para procurar Annalise, mas não estava
com ela. Ela achava que estava com
Clare. E Clare achava que estava com
Clemency. E Clemency achava que talvez
estivesse com Ruby, mas Ruby já não
tinha ido embora?
O problema do pânico é que ele toma
conta de você de repente. Num minuto
você ainda está bastante calma, dizendo
para si mesma: “Não seja ridícula. É
claro que não está perdido.” No minuto
seguinte, a equipe do Marie Curie está
anunciando que a noite vai ser encerrada
mais cedo por causa das circunstâncias
inesperadas e entrega bolsas com
produtos. E todas as suas amigas
desaparecem para pegar o metrô. E seu
dedo ainda não tem nada nele. E uma voz
dentro da sua cabeça grita: “Ai, meu
Deus! Eu sabia que isso ia acontecer!
Ninguém devia ter confiado a mim um
anel antigo! Que grande erro! Grande
erro!”
E é assim que você se vê debaixo de
uma mesa uma hora depois, tateando um
carpete de hotel imundo, rezando
desesperadamente por um milagre.
(Embora o pai de seu noivo tenha escrito
um livro inteiro, que foi um sucesso de
vendas, sobre como os milagres não
existem e que é tudo superstição, e que até
mesmo dizer “Ai, meu Deus” é sinal de
uma mente fraca.)4
De repente, percebo que meu celular
está piscando e agarro o aparelho com os
dedos tremendo. Chegaram três
mensagens e leio uma por uma cheia de
esperança.
Já encontrou? bj, Annalise
Desculpa, querida, não vi o anel. Relaxa, não
vou dizer nada pro Magnus. bjs, C
Oi, Pops! Meu Deus, que coisa horrível
perder o anel! Na verdade, acho que vi...
(mensagem em transferência)
Olho para o celular, empolgada. Clare
acha que o viu? Onde?
Saio dali debaixo da mesa e sacudo o
telefone de um lado para o outro, mas o
resto da mensagem se recusa a chegar. O
sinal aqui é péssimo. Como este hotel
pode se dizer ser cinco estrelas? Vou ter
que ir lá fora.
— Oi! — Eu me aproximo da faxineira
grisalha e aumento o tom da voz para falar
mais alto do que o barulho do aspirador.
— Vou dar uma saída para ler uma
mensagem. Mas se encontrar o anel, me
liga. Já te dei o número do meu celular,
vou estar ali fora, na rua...
— Tudo bem, querida — diz a
faxineira, toda paciente.
Corro pelo saguão, desviando de
grupos de pessoas da conferência, e ando
mais devagar ao passar pela mesa do
concierge.
— Algum sinal do...
— Nada foi entregue ainda, senhorita.
O ar lá fora está agradável, com um
leve toque de verão, embora estejamos
apenas no meio da primavera. Espero que
o tempo permaneça assim daqui a dez
dias, porque meu vestido de noiva é frente
única e estou contando que faça um dia
bonito.
Há degraus largos e baixos na entrada
do hotel e eu subo e desço por eles,
sacudindo o celular para a frente e para
trás, tentando conseguir sinal, e nada.
Acabo indo para a calçada, balançando o
telefone com mais força, depois levanto
os braços e me inclino em direção à
tranquila Knightsbridge Street, com o
celular nas pontas dos dedos.
Vai, celular , eu penso, bajulando-o
mentalmente. Você consegue. Faz isso
pela Poppy. Termina de receber a
mensagem. Deve ter sinal em algum
lugar... você consegue, vai...
— Aaaaaaah!
Ouço meu próprio grito de choque
antes mesmo de registrar o que aconteceu.
Sinto uma dor no ombro. Meus dedos
parecem arranhados. Uma pessoa de
bicicleta pedala muito rápido em direção
ao fim da rua. Só tenho tempo de registrar
um casaco cinza com capuz e calça jeans
preta skinny antes de a bicicleta dobrar a
esquina.
Minha mão está vazia. Que palhaçada é
essa que...
Olho para a palma da minha mão
incrédula e meio entorpecida. Já era.
Aquele cara roubou meu celular. Roubou
a porcaria do meu celular.
Meu celular é minha vida. Não existo
sem ele. É um órgão vital.
— Senhora, você está bem? — O
porteiro está descendo os degraus
correndo. — Aconteceu alguma coisa?
Ele machucou você?
— Eu... eu acabei de ser roubada —
consigo gaguejar. — Levaram meu
celular.
O porteiro faz um ruído de
solidariedade.
— Aproveitadores, isso que eles são.
A gente tem que tomar cuidado por essas
bandas daqui...
Não estou ouvindo. Começo a tremer
toda. Nunca me senti tão desolada e com
tanto pânico. O que vai ser de mim sem o
meu celular? Como vou viver? Minhas
mãos ficam procurando automaticamente o
aparelho no lugar em que costumo colocálo
no bolso. Meu instinto é mandar uma
mensagem de texto para alguém dizendo:
“Ai, meu Deus, perdi meu celular!” Mas
como posso fazer isso sem um maldito
celular?
Ele é meu companheiro. É meu amigo.
Minha família. Meu trabalho. Meu mundo.
É tudo. Sinto como se alguém tivesse
arrancado de mim os equipamentos que
me mantêm viva.
— Preciso chamar a polícia, senhora?
— O porteiro está me olhando com
ansiedade.
Estou distraída demais para responder.
Consumida por uma repentina e ainda
mais terrível percepção. O anel. Dei o
número do meu celular para todo mundo:
para as faxineiras, para os funcionários do
toalete, para o pessoal do Marie Curie,
para todo mundo. E se alguém encontrar o
anel? E se alguém está com ele e está
tentando me ligar neste minuto e ninguém
atende porque o cara de capuz já jogou
meu chip no rio?
Ai, Deus.5 Preciso falar com o
concierge. Vou dar meu número de casa
para ele...
Não. Péssima ideia. Se deixarem um
recado, Magnus pode acabar ouvindo.6
Tudo bem, então... então... vou dar o
número do meu trabalho. Isso.
Só que ninguém vai estar na clínica de
fisioterapia esta noite. Não posso ir para
lá e ficar sentada durante horas, só por
garantia.
Estou começando a ficar seriamente
apavorada agora. Tudo está dando errado.
Para piorar ainda mais as coisas,
quando corro para o saguão, o concierge
está ocupado. A mesa dele está cercada
por um grande grupo de pessoas que estão
participando da conferência, falando
sobre reservas de restaurante. Tento
chamar a atenção dele, na esperança de
que sinalize para que eu me aproxime por
considerar que tenho prioridade, mas ele
me ignora de propósito, e fico um pouco
sentida. Sei que tomei muito do tempo
dele esta tarde, mas será que ele não
percebe a crise horrível pela qual estou
passando?
— Senhora. — O porteiro me seguiu
até o saguão e está com a testa franzida de
preocupação. — Quer alguma coisa para
passar o susto? Arnold! — Ele chama
bruscamente um garçom. — Um conhaque
para a senhora, por favor, por conta da
casa. E se conversar com nosso
concierge, ele ajudará você com a polícia.
A senhora gostaria de se sentar?
— Não, obrigada. — Um pensamento
me ocorre de repente. — Talvez eu
devesse ligar para meu próprio número!
Ligar para o ladrão! Eu poderia pedir que
ele voltasse, poderia oferecer uma
recompensa... O que é que você acha?
Posso usar seu telefone?
O porteiro quase se encolhe quando
estico a mão.
— Senhora, acho que seria uma atitude
muito tola — diz ele com severidade. —
E tenho certeza de que a polícia
concordaria que a senhora não deveria
fazer isso. Acho que a senhora deve estar
em choque. Por favor, sente-se e tente
relaxar.
Humm. Talvez ele esteja certo. Não
gosto muito da ideia de negociar com um
criminoso de capuz. Mas não posso me
sentar e relaxar; estou agitada demais.
Para acalmar meus nervos, começo a
andar em círculos, com os saltos
estalando no piso de mármore. Passo pela
enorme figueira num vaso... passo pela
mesa cheia de jornais... passo por uma
enorme lata de lixo metálica... e volto até
a figueira. É um circuito reconfortante, e
posso manter os olhos fixos no concierge
o tempo todo enquanto espero que fique
disponível.
O saguão ainda está repleto de
executivos da conferência. Pelas portas de
vidro, consigo ver que o porteiro voltou
para os degraus e está ocupado chamando
táxis e guardando gorjetas. Um japonês
baixinho de terno azul está perto de mim
com alguns executivos de aparência
europeia, exclamando no que parece ser
japonês em voz alta e em tom furioso e
gesticulando para todo mundo, com o
crachá da conferência pendurado no
pescoço num cordão vermelho. Ele é tão
pequeno e os outros homens parecem estar
tão nervosos que quase sinto vontade de
sorrir.
O conhaque chega numa bandeja e faço
uma breve pausa para tomar tudo de uma
vez, depois volto a andar pelo mesmo
caminho repetitivo.
Figueira no vaso... mesa de jornais...
lata de lixo... figueira no vaso... mesa de
jornais... lata de lixo...
Agora que me acalmei um pouco,
começo a ter pensamentos assassinos.
Aquele cara de capuz se dá conta de que
arruinou minha vida? Será que ele
percebe o quanto um celular é crucial? É
a pior coisa que se pode roubar de
alguém. A pior.
E nem era um celular muito bom. Era
bem velho. Então boa sorte para o cara de
capuz se ele quiser digitar a letra “B” num
SMS ou entrar na internet. Espero que ele
tente e não consiga. Aí ele vai se lamentar.
Figueira... jornais... lixo... figueira...
jornais... lixo...
E ele machucou meu ombro. Maldito.
Talvez eu pudesse processá-lo e ganhar
milhões. Se algum dia o pegarem, o que
não vai acontecer.
Figueira... jornais... lixo...
Lixo.
Espere.
O que é aquilo?
Fico paralisada e olho para dentro da
lixeira me perguntando se alguém está
pregando uma peça em mim ou se estou
tendo uma alucinação.
É um celular.
Bem ali na lata de lixo. Um telefone
celular.
Notas
1. A especialidade dele é Simbolismo Cultural.
Fiz leitura dinâmica do livro dele, A filosofia do
simbolismo, depois do nosso segundo encontro e
tentei fingir ter lido um tempão antes, por
coincidência, como lazer. (Só que, para falar a
verdade, ele não acreditou nem por um minuto.)
Mas o que importa é que li. E o que mais me
impressionou foi que tinha tantas notas de
rodapé. Eu adorei isso. Elas não são práticas? É
só inserir uma delas quando quiser para no
mesmo instante parecer inteligente.
Magnus diz que notas de rodapé são para
coisas que não são nossa preocupação principal,
mas que ainda assim despertam algum interesse.
Esta é minha nota de rodapé sobre notas de
rodapé.
2. Frase que, na verdade, eu nunca falei. Assim
como Humphrey Bogart nunca disse “Toque de
novo, Sam” em Casablanca. É uma lenda urbana.
3. É claro que o hotel não estava pegando fogo. O
sistema tinha entrado em curto-circuito.
Descobri isso depois, mas não serviu de consolo.
4. Poirot alguma vez disse “Ai, meu Deus”?
Aposto que sim. Ou “Sacrebleu!”, o que dá no
mesmo. E isso não contradiz a teoria de Antony,
pois as células cinzentas de Poirot são
obviamente mais fortes do que as de qualquer
outra pessoa? Eu talvez faça essa observação para
Antony um dia. Quando tiver coragem. (Coisa
que nunca vai acontecer se eu tiver mesmo
perdido o anel, obviamente.)
5. Mente fraca.
6. Posso me permitir ao menos uma chance de
recuperá-lo em segurança sem que ele jamais
tenha que saber, não posso?
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