Pisco algumas vezes e volto a olhar, mas
ele ainda está lá, meio escondido entre
alguns folhetos da conferência e um copo
do Starbucks. O que um celular está
fazendo numa lata de lixo?
Olho ao redor para ver se alguém está
me observando, depois enfio o braço com
cuidado na lixeira e o pego. Está com
algumas gotas de café em cima, mas
parece perfeito. É um celular bom. Um
Nokia. Novo.
Eu me viro cautelosamente e noto o
saguão lotado. Ninguém está dando nem
um pingo de atenção para mim. Nem tem
alguém correndo e dizendo: “Olha ali meu
celular!” E estou andando por esta área há
uns dez minutos. Quem jogou esse celular
nesta lixeira fez isso há algum tempo.
Tem um adesivo na parte de trás do
celular com um Grupo de Consultoria
White Globe impresso em letras pequenas
e um número. Alguém o jogou fora? Será
que está quebrado? Aperto o botão de
ligar e a tela acende. Parece estar
funcionando perfeitamente bem.
Uma vozinha na minha mente me diz
que devo entregá-lo. Que devo ir à
recepção e dizer: “Com licença, acho que
alguém perdeu este celular.” É o que eu
deveria fazer. Apenas andar até a
recepção, neste momento, como qualquer
cidadão responsável e com consciência
cívica...
Meus pés não se mexem nem um
centímetro. Minha mão se fecha ao redor
do celular de forma protetora. O problema
é que preciso de um celular. Aposto que o
Grupo de Consultoria White Globe, seja
lá quem for, tem milhões de celulares. E
não o achei no chão nem no banheiro, não
é? Estava numa lixeira. Coisas jogadas na
lixeira são lixo. Não são de ninguém.
Foram descartadas no mundo. Essa é a
regra.
Olho novamente dentro da lata de lixo
e vejo um cordão vermelho, igual ao que
há nos pescoços dos caras da conferência.
Dou uma olhada para ter certeza de que o
concierge não está vendo, então enfio a
mão de novo na lata de lixo e pego um
crachá. A foto de uma garota
deslumbrante parece me encarar, sob a
qual está impresso: Violet Russell, Grupo
de Consultoria White Globe.
Estou criando uma teoria muito boa
agora. Eu poderia ser Poirot. Esse é o
celular de Violet Russell e ela o jogou
fora. Por... algum motivo.
Bom, a culpa é dela. Não minha.
O telefone toca de repente e eu levo um
susto. Merda! Está vivo. O toque começa
no volume máximo, e é a música “Single
Ladies”, da Beyoncé. Aperto rapidinho o
botão “ignorar”, mas logo depois ele toca
de novo, alto e inconfundível.
Não tem controle de volume nessa
porcaria? Algumas executivas que
estavam ali perto se viraram para olhar e
fico tão perturbada que aperto o botão de
atender em vez de o de ignorar. As
executivas ainda estão olhando para mim,
então levo o celular ao ouvido e me viro.
— A pessoa para quem você ligou não
está disponível no momento — digo,
tentando imitar uma voz gravada. — Por
favor, deixe seu recado após o bip. —
Isso vai dispensar seja lá quem for.
— Onde você está, porra? — Uma voz
estável e educada de homem começa a
falar e eu quase grito de susto. Funcionou!
Ele acha que sou a caixa postal! —
Acabei de conversar com Scottie. Ele tem
um contato que acha que pode fazer. Vai
ser como uma cirurgia por vídeo. Ele é
bom. Não vai deixar vestígios.
Não ouso respirar. Nem coçar o nariz,
onde de repente fiquei com uma coceira
insuportável.
— Beleza — diz o homem. — Então, o
que quer que faça, tome cuidado, porra.
Ele desliga e eu fico olhando para o
celular, atônita. Nunca achei que a pessoa
fosse mesmo deixar um recado.
Agora me sinto um pouco culpada. Ele
deixou mesmo um recado na caixa postal,
e Violet não vai receber. Quero dizer, não
é culpa minha ela ter jogado o celular
fora, mas mesmo assim... Por impulso,
procuro uma caneta na minha bolsa e pego
a única coisa que tenho onde posso
escrever, um velho programa de teatro.7
Eu rabisco: “Scottie tem um contato,
cirurgia por vídeo, sem vestígios, tome
cuidado, porra.”
Só Deus sabe sobre o que era o
recado. Lipoaspiração, talvez? Enfim, não
importa. A questão é, se algum dia eu
encontrar essa tal de Violet, vou poder
dar o recado.
Antes que o telefone possa tocar de
novo, corro até a mesa do concierge, que
está milagrosamente vazia.
— Oi — digo, sem fôlego. — Eu de
novo. Alguém achou meu anel?
— Posso garantir, senhora — diz ele
com um sorriso nada amistoso —, que
teríamos avisado se tivéssemos
encontrado. Temos o número do seu
celular...
— Não têm, não! — interrompo-o de
maneira quase triunfante. — Aí é que está
o problema! O número que te dei... hum...
já era. Morreu. De verdade. — A última
coisa que quero que ele faça é ligar para o
cara de capuz e mencionar um anel de
esmeralda valiosíssimo. — Por favor, não
liga para aquele número. Pode substituir o
que te dei por esse? — Copio
cuidadosamente o número que está escrito
na parte de trás do celular da Consultoria
White Globe. — Na verdade, só para
garantir... posso testar? — Estico a mão
para o telefone do hotel e digito o número
impresso. Um segundo depois, a voz de
Beyoncé começa a berrar do celular.
Tudo bem. Pelo menos posso relaxar um
pouco. Tenho um número.
— Mais alguma coisa, senhora?
O concierge está começando a parecer
irritado e tem uma fila se formando atrás
de mim. Agradeço outra vez e vou até o
sofá mais próximo, tomada pela
adrenalina. Tenho um celular e um plano.
Só levo cinco minutos para escrever o
número do meu novo telefone em vinte
folhas de papel do hotel, com “POPPY
WYATT – ANEL DE ESMERALDA, LIGUE, POR
FAVOR!!!!” em enormes letras de forma.
Para minha irritação, as portas do salão
agora estão trancadas (embora eu tenha
certeza de estar ouvindo as faxineiras
ainda lá dentro), então sou obrigada a
vagar pelos corredores do hotel, pelo
salão de chá, pelos toaletes femininos e
até pelo spa, entregando meu número para
cada funcionário do hotel que encontro e
explicando a história.
Ligo para a polícia e informo o novo
número. Mando uma mensagem de texto
para Ruby, cujo número sei de cor,
dizendo:
Oi! Roubaram meu telefone. Este eh meu n
novo. Pode passar pra todo mundo? Algum
sinal do anel???
Em seguida, me jogo outra vez no sofá,
exausta. Sinto como se tivesse passado o
dia morando neste hotel. Eu também
deveria ligar para Magnus para dar o
número do celular a ele, mas ainda não
consigo encarar isso. Tenho uma
convicção irracional de que ele
conseguirá perceber apenas pelo meu tom
de voz que o anel sumiu. Ele vai sentir
que meu dedo está sem nada assim que eu
disser “Oi”.
Por favor, anel, aparece. Por favor.
POR FAVOR, aparece...
Eu me reclino no sofá, fecho os olhos e
tento enviar uma mensagem telepática
pelo cosmos. Então, quando a voz de
Beyoncé começa a tocar novamente, dou
um pulo de susto. Talvez seja ele! Meu
anel! Alguém encontrou! Nem olho na tela
antes de apertar o botão para atender e
falar um “alô” empolgado.
— Violet? — Uma voz de homem no
meu ouvido. Não é o homem que ligou
antes, é um cara com voz mais grave. Ele
parece meio mal-humorado, se é que dá
para perceber isso ao ouvir apenas três
sílabas.8 Ele também respira pesado, o
que significa que é pervertido ou que está
fazendo algum tipo de exercício. — Você
está no lobby? O grupo japonês ainda está
aí?
Por uma reação automática, olho ao
redor. Tem vários japoneses perto das
portas.
— Estão sim — respondo. — Mas não
sou a Violet. Este celular não é mais dela.
Desculpa. Você pode de repente avisar
por aí que o número dela mudou?
Preciso tirar os amigos da Violet da
jogada. Não dá para eles ficarem me
ligando a cada cinco segundos.
— Perdão, mas quem é? — pergunta o
homem. — Por que atendeu esse telefone?
Onde está a Violet?
— Esse celular é meu agora, está em
minha posse — digo com mais confiança
do que sinto. Mas é verdade. Dono é
quem tem posse de um objeto.9
— Em sua posse? Que porra é essa que
você está... Ai, meu Deus. — Ele fala
mais alguns impropérios e consigo
claramente ouvir passos ao longe. Parece
que ele está correndo escada abaixo.10 —
Só me diz se eles estão indo embora?
— Os japoneses? — Semicerro os
olhos para ver melhor o grupo. — Talvez.
Não tenho certeza.
— Tem um cara baixinho com eles?
Acima do peso? De cabelo volumoso?
— Está falando do cara de terno azul?
Sim, ele está bem na minha frente. Parece
irritado. Agora está vestindo a capa de
chuva.
O japonês baixinho pegou um casaco
Burberry da mão de um colega. Está com
um olhar de raiva enquanto se veste, e um
fluxo constante de palavras furiosas em
japonês sai da boca dele, e todos os seus
amigos assentem com nervosismo.
— Não! — A exclamação do homem
ao telefone me pega de surpresa. — Ele
não pode ir embora.
— Pois é, desculpa, mas ele está indo.
— Você tem que impedir. Vai lá e não
deixa ele sair do hotel. Corre lá agora.
Faz qualquer coisa para não deixar.
— O quê? — Eu olho para o celular.
— Olha só, desculpa, mas eu nunca nem te
vi...
— Eu também não — responde ele. —
E quem é você, afinal? É amiga da Violet?
Pode me dizer exatamente por que ela
decidiu largar o emprego no meio da
maior conferência do ano? Será que ela
acha que de repente não preciso mais de
uma assistente?
A-rá. Então Violet é assistente dele.
Faz sentido. E ela largou o cara na mão!
Bom, não estou surpresa, ele é tão
mandão.
— De qualquer jeito, não importa. —
Ele mesmo interrompe o que estava
dizendo. — A questão é que estou na
escadaria, no nono andar e o elevador
quebrou. Chego aí embaixo em menos de
três minutos, e você precisa segurar
Yuichi Yamasaki até eu chegar. Seja lá
quem você for.
Que coragem.
— Senão o quê? — pergunto.
— Senão um ano de uma cuidadosa
negociação vai por água abaixo por causa
de uma confusão ridícula. O maior
negócio do ano vai desmoronar. Uma
equipe de vinte pessoas vai perder o
emprego. — A voz dele é incansável. —
Gerentes seniores, secretárias, todos. Só
porque não consigo chegar aí embaixo
rápido o suficiente e a única pessoa que
poderia ajudar não quer ajudar.
Ah, droga.
— Tudo bem! — digo, irritada. — Vou
fazer o melhor que puder. Como é o nome
dele mesmo?
— Yamasaki.
— Espera! — Aumento o tom de voz
enquanto corro pelo saguão. — Por favor!
Sr. Yamasaki? O senhor poderia esperar
um minuto?
O Sr. Yamasaki se vira, duvidoso, e
alguns funcionários puxa-sacos dão um
passo à frente e ficam dos dois lados dele,
para protegê-lo. Ele tem o rosto largo,
ainda enrugado de raiva, e um pescoço
grosso ao redor do qual está enrolando um
cachecol de seda. Tenho a sensação de
que ele não quer bater papo.
Não tenho ideia do que dizer depois.
Não falo japonês, não sei nada sobre
negócios japoneses nem sobre cultura
japonesa. Além de sushi. Mas não posso
exatamente ir até ele e dizer “sushi!” do
nada. Seria como chegar perto de um
executivo americano bambambã e dizer
“hambúrguer”.
— Sou... uma grande fã — falei de
improviso. — Do seu trabalho. O senhor
pode me dar um autógrafo?
Ele parece perplexo, e um dos colegas
sussurra a tradução no ouvido dele.
Imediatamente sua testa se desfranze e ele
faz uma reverência para mim.
Eu retribuo a reverência com cuidado,
e ele estala os dedos e dá alguma
instrução. Um momento depois, uma bela
pasta de couro está aberta em frente a ele
e o Sr. Yamasaki escreve alguma coisa
elaborada em japonês.
— Ele ainda está aí? — A voz do
estranho emana de repente do celular.
— Está — murmuro. — Por pouco.
Onde você está? — Dou um sorriso largo
para o Sr. Yamasaki.
— No quinto andar. Segura o japonês
aí. Independente do que tenha que fazer.
O Sr. Yamasaki me entrega o pedaço
de papel, coloca a tampa da caneta, faz
outra reverência e se prepara para sair
andando.
— Espera! — falo, desesperada. —
Será que eu posso... mostrar uma coisa
pra você?
— O Sr. Yamasaki está muito ocupado.
— Um dos colegas dele, usando óculos de
aço e a camisa mais branca que já vi, se
vira para mim. — Faça a gentileza de
entrar em contato com nosso escritório.
Estão se afastando de novo. O que faço
agora? Não posso pedir outro autógrafo.
Não posso derrubá-lo como num jogo de
rúgbi. Preciso chamar a atenção dele de
alguma maneira...
— Tenho um comunicado especial a
fazer! — exclamo, correndo atrás deles.
— Sou um telegrama cantado! Trago um
recado dos muitos fãs do Sr. Yamasaki.
Seria muito deselegante da parte dele com
os fãs se não quiser me ouvir.
A palavra “deselegância” parece fazêlos
parar de repente. Estão franzindo a
testa e trocando olhares confusos.
— Um telegrama cantado? — pergunta
com desconfiança o homem de óculos de
aço.
— Tipo um Gorillagram — continuo.
— Só que cantado.
Não sei se ajudou em alguma coisa
associar esses serviços de recado, com
alguém fantasiado de gorila, ao que estou
querendo fazer.
O intérprete murmura freneticamente
no ouvido do Sr. Yamasaki, e depois de
alguns minutos ele diz para mim:
— Pode se apresentar.
O Sr. Yamasaki se vira e todos os
colegas dele também, cruzando os braços,
em expectativa, e formando uma fileira,
lado a lado. Ao redor do saguão posso
ver alguns olhares interessados partindo
de outros grupos de executivos.
— Onde você está? — murmuro
desesperadamente ao telefone.
— No terceiro andar — diz a voz do
homem depois de um momento. — Meio
minuto. Não deixa ele fugir.
— Comece — diz o homem de óculos
de aço de maneira incisiva.
Alguns outros hóspedes do hotel que
estão no saguão pararam para olhar. Ai,
Deus. Como eu fui me meter nisso?
Primeiro, não sei cantar. Segundo, o que
canto para um executivo japonês que
nunca vi antes? Terceiro, por que falei
telegrama cantado?
Mas se eu não fizer alguma coisa logo,
vinte pessoas podem perder o emprego.
Faço uma reverência exagerada só
para ganhar mais tempo e todos os
japoneses fazem uma reverência em
resposta.
— Comece — repete o homem de
óculos de aço, com os olhos brilhando
ameaçadoramente.
Eu respiro fundo. Vamos lá. Não
importa o que eu fizer. Só precisa durar
meio minuto. Depois posso sair correndo
e eles nunca vão me ver de novo.
— Sr. Yamasaki... — começo com
hesitação no ritmo de “Single Ladies”. —
Sr. Yamasaki. Sr. Yamasaki, Sr.
Yamasaki. — Balanço os quadris e os
ombros para ele exatamente como a
Beyoncé.11 — Sr. Yamasaki, Sr.
Yamasaki.
Na verdade, isso é bem fácil. Não
preciso de letra, posso ficar cantando “Sr.
Yamasaki” sem parar. Depois de um
tempinho, alguns dos japoneses até
começam a cantar junto e a dar tapinhas
nas costas do Sr. Yamasaki.
— Sr. Yamasaki, Sr. Yamasaki. Sr.
Yamasaki, Sr. Yamasaki. — Levanto o
dedo e fico balançando para ele com uma
piscadela. — Ooh-ooh-ooh... ooh-oohooh...
A música é ridiculamente contagiante.
Todos os japoneses estão cantando agora,
menos o Sr. Yamasaki, que está ali de pé
com cara de satisfação. Um pessoal da
conferência que estava por perto se juntou
à cantoria e consigo ouvir um deles
dizendo:
— Isso é um daqueles flash mobs?
— Sr. Yamasaki, Sr. Yamasaki, Sr.
Yamasaki... Onde você está? — murmuro
ao telefone, ainda sorrindo com alegria.
— Assistindo.
— O quê? — Eu levanto a cabeça e
percorro o saguão com o olhar.
De repente, meu olhar se fixa num
homem de pé sozinho, a uns 30 metros de
distância. Ele usa um terno escuro e tem
cabelo preto e cheio, que está todo
bagunçado, além de estar com um telefone
no ouvido. Mesmo de longe consigo
perceber que está rindo.
— Há quanto tempo está aí? —
pergunto, furiosa.
— Acabei de chegar. Não quis
interromper. Ótimo trabalho, aliás —
acrescenta ele. — Acho que você
convenceu Yamasaki a nosso favor nesse
momento.
— Obrigada — digo com sarcasmo. —
Fico feliz em poder ajudar. Ele é todo
seu. — Faço uma reverência para o Sr.
Yamasaki com um floreio, me viro e sigo
rapidamente para uma saída, ignorando os
gritos desapontados dos japoneses. Tenho
coisas mais importantes com que me
preocupar do que estranhos arrogantes e
seus negócios idiotas.
— Espera! — A voz do homem me
segue pelo aparelho. — O telefone. É da
minha assistente.
— Bom, então ela não deveria ter
jogado o aparelho fora — respondo,
empurrando as portas de vidro. —
Achado não é roubado.
Há 12 paradas do metrô de Knightsbridge
até a casa dos pais de Magnus no norte de
Londres, e assim que saio na superfície,
olho o celular. Está piscando com novas
mensagens, umas dez de texto e uns vinte
e-mails, mas só há cinco mensagens de
texto para mim e nenhuma delas com
novidades sobre o anel. Uma é da polícia,
e meu coração dá um salto de esperança,
mas é só para confirmar que registrei um
boletim de ocorrência e para perguntar se
quero uma visita do oficial de apoio às
vítimas.
O resto são mensagens de texto e emails
para Violet. Conforme vou olhando,
percebo que “Sam” aparece no assunto de
vários e-mails. Com a sensação de ser
Poirot de novo, verifico a função
“chamadas recebidas” e, obviamente, o
último número que ligou para este celular
foi o “Sam Celular”. Então é ele. O chefe
da Violet. O cara de cabelo escuro e
desgrenhado. E para provar, o e-mail dela
é
assistentedesamroxton@consultoriawhiteglobe.Por pura curiosidade, clico num dos emails.
É de
jennasmith@grantlyassetmanagement.com
e o assunto é: “Re: Jantar?”
Obrigada, Violet. Por favor, não comente
nada disso com Sam. Estou meio sem jeito
agora!
Opa. Por que ela está sem jeito? Antes
que eu consiga me impedir, mudei de tela
para ler o e-mail anterior, que foi enviado
ontem.
Na verdade, Jenna, você precisa saber de uma
coisa: Sam está noivo. Atenciosamente,
Violet.
Ele está noivo. Interessante. Enquanto
releio as palavras, sinto uma reação
estranha dentro de mim que não consigo
identificar. Surpresa?
Mas por que eu deveria estar surpresa?
Nem conheço o cara.
Muito bem, agora eu tenho que saber a
história toda. Por que Jenna está sem
jeito? O que aconteceu? Volto ainda mais
alguns e-mails e encontro um longo, o
primeiro, de Jenna, que conheceu esse
Sam Roxton num evento de trabalho, ficou
doida por ele e o convidou para jantar
duas semanas atrás, mas ele não retornou
as ligações.
... tentei novamente ontem... talvez esteja
ligando para o número errado... alguém me
disse que ele é famoso e que a assistente dele
é o melhor caminho para fazer contato... mil
desculpas por incomodar... talvez só me diz
se é possível...
Coitadinha. Estou muito indignada por
ela. Por que ele não respondeu? Qual é a
dificuldade de enviar um e-mail rápido
dizendo “Não, obrigado”? E ainda por
cima ele é noivo, pelo amor de Deus.
Enfim. Deixa para lá. De repente, me
dou conta de que estou xeretando a caixa
de e-mails de uma pessoa quando tenho
tantas outras coisas mais importantes em
que pensar. Prioridades, Poppy. Preciso
comprar vinho para os pais de Magnus. E
um cartão de boas-vindas. E, se eu não
achar o anel nos próximos vinte minutos...
um par de luvas.
Desastre. Desastre. Acontece que luvas
não são vendidas em abril, no auge da
primavera. As únicas que consegui
encontrar estavam no depósito de uma
loja Accessorize. Estoque antigo de Natal,
só disponíveis no tamanho pequeno.
Não consigo acreditar que estou
mesmo planejando cumprimentar meus
futuros sogros com luvas de lã vermelha
com desenhos de renas e apertadas
demais. Com franjas.
Mas não tenho escolha. É isso ou
entrar com as mãos nuas.
Quando inicio a longa subida da colina
que leva à casa deles, começo a me sentir
enjoada de verdade. Não é só o anel. É
toda a coisa dos futuros sogros. Dobro a
esquina e vejo que todas as janelas da
casa estão acesas. Eles estão em casa.
Nunca vi uma casa tão adequada a uma
família quanto a dos Tavish. É mais velha
e maior do que qualquer outra casa da rua,
e olha para elas de cima, de sua posição
superior. Há teixos e uma araucária
chilena no jardim. Os tijolos são cobertos
de hera e as janelas ainda são as de
madeira originais de 1835. Dentro, há
papel de parede William Morris dos anos
1960, e o piso é coberto de tapetes turcos.
Mas não dá para ver de fato os tapetes
porque costumam estar sob camadas de
documentos e manuscritos velhos que
ninguém se dá o trabalho de recolher.
Ninguém na família Tavish é muito fã de
arrumação. Uma vez achei um ovo cozido
fossilizado numa cama do quarto de
hóspedes, ainda no oveiro, com uma
torrada ressecada como escudeira. Já
devia ter feito aniversário de um ano.
E em todos os cantos, por toda a casa,
há livros. Colocados em três fileiras de
profundidade nas prateleiras, empilhados
no chão e nas laterais de cada banheira
manchada de limo. Antony escreve livros,
Wanda escreve livros, Magnus escreve
livros e o irmão mais velho dele, Conrad,
escreve livros. Até mesmo a mulher de
Conrad, Margot, escreve livros.12
E isso é ótimo. Quero dizer, é uma
coisa maravilhosa, todos esses gênios
intelectuais numa só família. Mas acaba
fazendo você se sentir um tiquinho de
nada deslocado.
Não me entenda mal, eu me acho bem
inteligente. Sabe, para uma pessoa normal
que frequentou a escola e a faculdade e
tem um emprego e tal. Mas essas pessoas
não são normais, elas estão em outro
nível. Elas têm supercérebros. São a
versão acadêmica de Os Incríveis.13 Só
me encontrei com os pais dele algumas
vezes, quando voltaram a Londres por
uma semana para Antony dar uma palestra
importante, mas foi o suficiente para eu
perceber. Enquanto Antony fazia a
palestra sobre teoria política, Wanda
estava apresentando um estudo sobre o
judaísmo feminista para um grupo de
reflexão, e depois os dois apareceram no
The Culture Show, dando opiniões
contrárias sobre um documentário que
tratava da influência da Renascença.14
Esse foi o contexto de quando nos
conhecemos. Sem pressão nenhuma, ou
qualquer coisa do tipo.
Fui apresentada aos pais de vários
namorados ao longo dos anos, mas essa
era com certeza a pior experiência de
todas. Tínhamos acabado de apertar as
mãos e conversado sobre bobeiras e eu
estava contando com orgulho para Wanda
em qual faculdade eu tinha estudado
quando Antony olhou por cima dos óculos
meia-lua e disse:
— Diploma em fisioterapia. Que
divertido.
Eu me senti imediatamente arrasada.
Não sabia o que falar. Na verdade, fiquei
tão sem reação que saí de onde estávamos
para ir ao banheiro.15
Depois disso, óbvio que fiquei
travada. Aqueles três dias foram pura
tortura. Quanto mais intelectual a
conversa ia se tornando, mais
constrangida e incapaz de falar eu ficava.
Meu segundo pior momento: pronunciar
“Proust” errado e todo mundo trocar
olhares.16 Meu pior momento de todos:
quando estávamos assistindo University
Challenge juntos na sala de TV e surgiu o
assunto ossos. Minha especialidade! Eu
estudei isso! Sei os nomes em latim e
tudo! Mas quando estava pegando fôlego
para responder a primeira pergunta,
Antony já tinha dado a resposta certa. Fui
mais rápida na segunda vez... mas ele foi
ainda mais rápido do que eu. O programa
todo se passou como se fosse uma
corrida, e ele ganhou. Ao final, ele olhou
para mim e perguntou:
— Não ensinam anatomia na faculdade
de fisioterapia, Poppy?
Eu me senti humilhada.
Magnus diz que me ama, não ao meu
cérebro, e que tenho que ignorar os pais
dele. E Natasha disse para eu pensar na
pedra do anel e na casa de Hampstead e
n a Villa da Toscana. Essa é a Natasha.
Minha abordagem tem sido a seguinte:
simplesmente não pensar neles. Estava
funcionando. Eles estavam quietinhos em
Chicago, a milhares de quilômetros de
distância.
Mas agora, estão de volta.
Ai, Deus. E eu ainda estou um pouco
abalada com aquela história do “Proust”.
(Prust? Prost?) E não revisei os nomes
dos ossos em latim. E estou usando luvas
vermelhas de lã com desenho de renas em
pleno abril. Com franjas.
Minhas pernas estão tremendo quando
toco a campainha. Tremendo mesmo. Eu
me sinto como o espantalho em O mágico
de Oz. A qualquer minuto vou cair no
chão e Wanda vai tacar fogo em mim por
ter perdido o anel.
Para, Poppy. Está tudo bem. Ninguém
vai desconfiar de nada. A minha história é
que queimei a mão. Essa é a minha
história.
— Oi, Poppy!
— Felix! Oi!
Estou tão aliviada de ser Felix abrindo
a porta que meu cumprimento sai como um
suspiro trêmulo.
Felix é o caçula da família. Só tem 17
anos e ainda está no colégio. Na verdade,
Magnus está morando naquela casa com
ele durante o tempo em que os pais estão
fora, como se fosse uma babá, e fui morar
lá também assim que ficamos noivos. Não
que Felix precise de uma babá. Ele é
completamente independente, lê o tempo
todo e nunca nem percebemos que ele está
em casa. Uma vez tentei bater um papinho
legal sobre drogas com ele. Felix
educadamente me corrigiu em cada fato
que mencionei, depois disse que reparou
que bebo Red Bull acima do limite
recomendado e perguntou se eu não
achava que talvez fosse viciada? Aquela
foi a última vez em que tentei bancar a
irmã mais velha.
Mas enfim... Tudo isso vai terminar
agora que Antony e Wanda estão voltando
dos Estados Unidos. Voltei a morar no
meu apartamento e começamos a procurar
um lugar para alugar. Magnus era a favor
de continuarmos aqui. Ele achou que
podíamos ficar no quarto extra com
banheiro que tem no último andar, e isso
não seria conveniente, porque assim ele
poderia continuar a usar a biblioteca do
pai?
Ele ficou maluco? Não vou viver sob o
mesmo teto que os Tavish de jeito
nenhum.
Sigo Felix até a cozinha, onde Magnus
está sentado à vontade numa cadeira,
gesticulando para uma página impressa e
dizendo:
— Acho que seu argumento está
equivocado aqui. Segundo parágrafo.
Não importa como Magnus se senta,
não importa o que ele faça, de alguma
maneira sempre consegue parecer
elegante. Os pés com sapatos de camurça
estão em cima de outra cadeira, ele está
no meio de um cigarro17 e seu cabelo está
penteado para trás como uma cachoeira.
Todos os Tavish têm a mesma cor de
cabelo, como uma família de raposas.
Wanda até tinge seus fios com hena. Mas
Magnus é o mais bonito de todos, e não
estou falando isso só porque vou me casar
com ele. A pele dele tem sardas, mas
também se bronzeia muito fácil, e o
cabelo castanho-avermelhado escuro
parece saído de um comercial de produto
de cabelo. É por isso que deixa o cabelo
comprido.18 Ele é bem vaidoso quanto a
isso.
Além do mais, apesar de ser um
acadêmico, não é um cara antiquado que
fica em casa lendo livros o tempo todo.
Ele esquia muito bem e vai me ensinar.
Na verdade, foi assim que nos
conhecemos. Ele tinha torcido o pulso
esquiando e nos procurou para fazer
fisioterapia por indicação médica. Ele
deveria se consultar com Annalise, mas
ela o trocou por um dos clientes fixos e
ele acabou vindo parar comigo. Na
semana seguinte ele me convidou para
sair e depois de um mês, me pediu em
casamento. Um mês!19
Agora Magnus olha para a frente e seu
rosto se ilumina.
— Amor! Como está minha linda? Vem
cá. — Ele me chama para me dar um
beijo, depois coloca as mãos ao redor do
meu rosto, como sempre faz.
— Oi. — Dou um sorriso forçado. —
E aí, seus pais estão aqui? Como foi o
voo? Mal posso esperar para ver os dois.
Estou tentando parecer o mais animada
possível, embora minhas pernas estejam
querendo sair correndo pela porta colina
abaixo.
— Você não recebeu minha mensagem
de texto? — Magnus parece intrigado.
— Que mensagem de texto? Ah. — De
repente me dou conta. — Claro. Eu perdi
meu celular. Estou com um número novo.
Deixa eu te dar.
— Você perdeu o celular? — Magnus
fica me olhando. — O que houve?
— Nada! — digo com alegria. — Só...
perdi aquele e precisei de outro. Nada de
mais. Nada dramático.
Decidi seguir a estratégia de que
quanto menos eu disser para Magnus
agora, melhor. Não quero entrar numa
discussão sobre o motivo de estar
agarrada desesperadamente a um celular
qualquer que achei numa lata de lixo.
— E aí, o que dizia a mensagem? —
acrescento rapidamente, tentando fazer a
conversa seguir em frente.
— O avião dos meus pais foi
desviado. Eles tiveram que ir para
Manchester. Só vão chegar amanhã.
Desviado?
Manchester?
Ai, meu Deus. Estou salva! Ganhei
tempo! Minhas pernas não param de
tremer! Quero cantar o coral de Aleluia.
Ma-an-chester! Ma-an-chester!
— Meu Deus, que pena. — Estou
fazendo um esforço enorme para ficar com
cara de decepção. — Pobrezinhos.
Manchester. Fica a quilômetros de
distância! Eu também estava muito
ansiosa para ver os dois. Que droga.
Acho que fui bem convincente. Felix
me lança um olhar estranho, mas Magnus
já pegou o texto impresso de novo. Não
comentou sobre minhas luvas. Nem Felix.
Talvez eu possa relaxar um pouco.
— Então... hum... rapazes. — Dou uma
olhada no lugar. — E a cozinha, hein?
Magnus e Felix disseram que iam
arrumar naquela tarde, mas a cozinha
parece que foi bombardeada. Há caixas
de comida de restaurante sobre a mesa e
uma pilha de livros em cima do fogão, e
até outra apoiada numa frigideira.
— Seus pais vão voltar amanhã. Não é
melhor a gente fazer alguma coisa?
Magnus permanece impassível.
— Eles não vão ligar.
Para ele é supertranquilo dizer isso.
Mas eu sou a nora (quase) que mora aqui
e vai levar a culpa.
Magnus e Felix começaram a falar
sobre uma nota de rodapé,20 então vou até
o fogão e começo a dar uma arrumada
rápida. Nem ouso tirar as luvas, mas os
rapazes não estão prestando a menor
atenção em mim, ainda bem. Pelo menos
sei que o resto da casa está OK. Dei uma
olhada em tudo ontem, troquei as
embalagens velhas de sabonete líquido e
comprei uma cortina nova para o
banheiro. O melhor foi que encontrei
algumas anêmonas para o estudo de
Wanda. Todo mundo sabe que ela adora
anêmonas. Até escreveu um artigo sobre
“Anêmonas na Literatura”. (O que é típico
dessa família: você não pode
simplesmente gostar de uma coisa, tem
que virar o maior especialista nela.)
Magnus e Felix ainda estão
concentrados na conversa enquanto
termino. A casa está arrumada. Ninguém
me perguntou sobre o anel. Vou parar
enquanto estou ganhando.
— Então vou para casa — digo
casualmente e dou um beijo na testa de
Magnus. — Fica aqui fazendo companhia
para o Felix. Dá um oi de boas-vindas aos
seus pais por mim.
— Dorme aqui! — Magnus passa um
braço pela minha cintura e me puxa. —
Eles vão querer ver você.
— Não, recebam seus pais vocês.
Amanhã eu passo aqui. — Dou um sorriso
intenso, para afastar a atenção do fato de
que estou indo em direção à porta, com as
mãos atrás das costas. — Vamos ter muito
tempo.
— Eu não culpo você — diz Felix,
olhando para a frente pela primeira vez
desde que abriu a porta para mim.
— Como? — pergunto, um pouco
confusa. — Não me culpa por quê?
— Por não querer ficar. — Ele dá de
ombros. — Acho que você tem sido
extremamente otimista, levando em
consideração a reação deles. Estava
querendo te dizer isso há semanas. Você
deve ser uma pessoa muito boa, Poppy.
Do que ele está falando?
— Não sei... O que você quer dizer?
— Eu me viro para Magnus em busca de
ajuda.
— Não é nada — diz ele, rápido
demais. Mas Felix está olhando para o
irmão mais velho com uma luz de
entendimento nos olhos.
— Ai, meu Deus. Você não contou a
ela?
— Felix, cala a boca.
— Não contou, não é? Isso não é justo,
é, Mag?
— Me contou o quê? — Viro o olhar
de um rosto para o outro. — O quê?
— Não é nada. — Magnus parece
perturbado. — Só... — Ele me olha nos
olhos, por fim. — Tudo bem, meus pais
não ficaram exatamente felizes ao ouvirem
que estamos noivos. Só isso.
Por um momento, não sei como reagir.
Eu olho para ele em silêncio, tentando
processar o que acabei de ouvir.
— Mas você falou... — Não confio na
minha voz. — Você falou que eles ficaram
animados. Disse que estavam
empolgados!
— Eles vão ficar animados — diz ele,
irritado. — Quando tiverem um pouco de
sensatez.
Eles vão ficar?
Meu mundo todo está prestes a
desmoronar. Já era bem ruim quando eu
achava que os pais de Magnus eram
apenas gênios intimidantes. Mas esse
tempo todo eles foram contra o nosso
casamento?
— Você me disse que eles não
conseguiam imaginar uma nora mais doce
e encantadora. — Estou tremendo toda
agora. — Disse que eles me mandaram
lembranças especiais de Chicago! Era
tudo mentira?
— Eu não queria aborrecer você! —
Magnus olha com raiva para Felix. —
Não é nada de mais. Eles vão mudar de
ideia. Só acham que tudo foi muito
rápido... que não conhecem você direito...
São uns idiotas — conclui ele com
desdém. — Falei isso para eles.
— Você brigou com seus pais? — Eu o
encaro, consternada. — Por que não me
contou nada disso?
— Não foi briga — diz ele na
defensiva. — Foi mais... uma desavença.
Uma desavença? Uma desavença?
— Uma desavença é pior do que uma
briga! — grito, apavorada. — É um
milhão de vezes pior! Ai, Deus, eu queria
que você tivesse me contado... O que vou
fazer? Como posso olhar na cara deles?
Eu sabia. Os professores não me
acham boa o bastante. Sou como a garota
da ópera que abre mão do amante por não
ser adequada, depois pega tuberculose e
morre, e bem feito para ela, porque era
tão inferior e burra. Ela provavelmente
também não conseguia pronunciar
“Proust” direito.
— Poppy, fica calma! — disse Magnus
com irritação. Ele fica de pé e me segura
com firmeza pelos ombros. — Foi
exatamente por isso que não contei. É
besteira de família e não tem nada a ver
conosco. Eu te amo. Vamos nos casar.
Vou em frente com isso
independentemente do que qualquer
pessoa diga, seja meus pais, meus amigos
ou qualquer outra pessoa. Nosso
relacionamento é nosso. — A voz dele
está tão firme que começo a relaxar. — E,
seja como for, assim que passarem mais
tempo com você, sei que vão mudar de
ideia. Eu sei.
Não consigo evitar um sorriso
relutante.
— Essa é minha linda garota. —
Magnus me dá um abraço apertado e eu
retribuo, me esforçando para acreditar
nele.
Quando ele se afasta, seu olhar pousa
nas minhas mãos e ele franze a testa,
parecendo perplexo.
— Amor... por que você está de luvas?
Vou ter um colapso nervoso. Vou mesmo.
O desastre do anel quase foi revelado.
Teria acontecido se não fosse por Felix.
Eu estava no meio da minha desculpa
absurda e vacilante sobre a queimadura na
mão, esperando que Magnus desconfiasse
a qualquer momento, quando Felix
bocejou e disse “Vamos para o pub?”, e
Magnus de repente se lembrou de um email
que tinha que enviar antes e todo
mundo se esqueceu das minhas luvas.
E aproveitei a oportunidade para ir
embora. Rapidinho.
Agora estou sentada no ônibus,
olhando para a noite escura, sentindo um
frio por dentro. Perdi o anel. Os Tavish
não querem que eu me case com Magnus.
Meu celular já era. Sinto como se todas as
coisas que me davam segurança tivessem
sido arrancadas de uma vez só.
O telefone no meu bolso começa a
tocar Beyoncé de novo, e eu atendo sem
muitas esperanças.
Realmente, não é nenhuma das minhas
amigas ligando para dizer: “Encontrei!”
Nem a polícia, nem o concierge do hotel.
É ele. Sam Roxton.
— Você fugiu — diz ele, sem
preâmbulos. — Preciso do celular de
volta. Onde você está?
Encantador. Nem um “Muito obrigado
por me ajudar com meu negócio com os
japoneses”.
— De nada — respondo. — Disponha.
— Ah. — Ele parece
momentaneamente constrangido. — É
mesmo. Obrigado. Estou em débito
contigo. Agora como você vai me
devolver o celular? Pode deixar no
escritório ou eu posso mandar um boy
buscar. Onde você está?
Fico em silêncio. Não vou devolver
para ele. Preciso deste número.
— Alô?
— Oi. — Eu seguro o aparelho com
mais força e engulo em seco. — O
problema é que eu preciso desse telefone
emprestado. Só por um tempo.
— Ai, Jesus. — Consigo ouvi-lo
expirar. — Olha, infelizmente não está
disponível para “empréstimo”. É
propriedade da empresa e preciso dele de
volta. Ou será que por “empréstimo” você
quer dizer “roubo”? Porque, acredite,
posso rastrear você, e não vou te pagar
100 libras pelo prazer de fazer isso.
É isso que ele acha? Que quero
dinheiro? Que sou alguma espécie de
sequestradora de telefone?
— Não quero roubar o telefone! —
exclamo, indignada. — Só preciso dele
por alguns dias. Dei o número para todo
mundo, e é uma emergência de verdade...
— Você fez o quê? — Ele parece
desnorteado. — Por que você faria isso?
— Perdi meu anel de noivado. — Mal
consigo suportar falar em voz alta. — É
muito antigo e valioso. E depois meu
celular foi roubado, e fiquei
completamente desesperada, então passei
por uma lata de lixo e ele estava lá. No
lixo — acrescento, para dar ênfase. —
Sua assistente jogou o aparelho fora.
Quando uma coisa vai para a lata de lixo,
é pública, sabe? Qualquer um pode ficar
com ela.
— Que papo furado — responde ele.
— Quem te falou isso?
— É... é de conhecimento geral. —
Tento parecer firme. — Mesmo assim,
por que sua assistente foi embora e jogou
o celular no lixo? Não é uma boa
assistente, se quer saber.
— Não. Não é uma boa assistente. É na
verdade a filha de um amigo que nunca
deveria ter sido contratada para o
emprego. Está trabalhando há três
semanas. Pelo que soube, conseguiu um
contrato de modelo ao meio-dia de hoje.
Um minuto depois, foi embora. Nem se
deu o trabalho de me contar que ia sair.
— Ele parece bem irritado. — Escuta,
senhorita... qual é o seu nome?
— Wyatt. Poppy Wyatt.
— Bem, chega de brincadeira, Poppy.
Eu sinto muito pelo seu anel. Espero que
apareça. Mas esse celular não é um
brinquedinho do qual você pode se
apropriar para seus próprios fins. É um
celular empresarial que recebe mensagens
de negócios o tempo todo. E-mails.
Coisas importantes. Minha assistente
governa minha vida. Preciso dessas
mensagens.
— Eu as encaminho — ofereço no ato.
— Encaminho tudo. Que tal?
— Mas que... — Ele murmura alguma
coisa baixinho. — Tudo bem. Você
venceu. Compro um celular novo para
você. Me dá seu endereço, mando para
lá...
— Preciso deste aqui — digo com
teimosia. — Preciso deste número.
— Pelo amor de...
— Meu plano pode funcionar! —
Minhas palavras saem em turbilhão. —
Tudo que chegar, eu te mando na mesma
hora. Você nem vai saber a diferença!
Você ia ter que fazer isso de qualquer
maneira, não ia? Se perdeu sua assistente,
de que serve o celular de uma assistente?
Assim é melhor. Além do mais, você me
deve uma por eu ter impedido o Sr.
Yamasaki de ir embora. — Não consigo
não mencionar isso. — Você mesmo
falou.
— Não foi isso que eu quis dizer e
você sabe...
— Você não vai perder nada, prometo!
— Interrompo o resmungo irritado dele.
— Vou encaminhar todas as mensagens.
Olha, vou te mostrar, espera só um
pouquinho...
Eu desligo, abro as mensagens que
chegaram no celular desde a manhã e num
minuto encaminho uma a uma para o
celular de Sam. Meus dedos trabalham na
velocidade da luz.
Mensagem de texto de “Vicks Myers”:
encaminhada. Mensagem de texto de “Sir
Nicholas Murray”: encaminhada. É uma
questão de segundos até que eu tenha
encaminhado todas. E os e-mails podem
todos ir para
samroxton@consultoriawhiteglobe.com.
E-mail de “Departamento de RH”:
encaminhado. E-mail de “Tania Phelps”:
encaminhado. E-mail de “Pai”...
Eu hesito por um momento. Preciso
tomar cuidado aqui. Será que é o pai de
Violet ou o de Sam? O endereço no alto
do e-mail é peterr452 @hotmail.com, o
que não ajuda muito.
Digo para mim mesma que é por uma
boa causa e abro para dar uma olhada.
Querido Sam,
Já faz um bom tempo. Penso muito em você.
Fico imaginando o que tem feito, e adoraria
conversar quando desse. Recebeu alguma das
minhas mensagens no celular? Não se
preocupe, sei que você é um homem ocupado.
Se algum dia estiver aqui por perto, você sabe
que pode sempre vir me visitar. Tem um
assunto que preciso discutir com você, uma
coisa bem legal pra falar a verdade, mas,
como falei, não tem pressa.
Com carinho,
seu Pai
Quando chego ao final, fico um pouco
chocada. Sei que esse cara é um estranho
e que não é da minha conta. Mas,
sinceramente. Ele bem que poderia
responder os recados do pai. Qual é a
dificuldade de dedicar meia hora para
conversar com o pai? E o pai dele parece
tão fofo e humilde. Pobre coroa, tendo que
mandar e-mail para a assistente do filho.
Sinto vontade de eu mesma responder.
Sinto vontade de visitá-lo em seu pequeno
chalé.21
Enfim. Não importa. Não é a minha
vida. Aperto o botão de encaminhar e o email
segue junto com os outros. Um
momento depois, Beyoncé começa a
cantar. É Sam de novo.
— Quando exatamente Sir Nicholas
Murray mandou uma mensagem de texto
para Violet? — pergunta ele
abruptamente.
— Hum... — Eu olho para o telefone.
— Umas quatro horas atrás. — As
primeiras palavras da mensagem
aparecem na tela, então não há nenhum
grande mal em clicar nela e ler o resto,
não é? Não que seja muito interessante.
Violet, por favor, peça a Sam para me ligar. O
telefone dele está desligado. Abçs, Nicholas.
— Merda. Merda. — Sam fica em
silêncio por um momento. — Tudo bem,
se ele mandar outro SMS, me avisa logo
em seguida, certo? Dá uma ligada.
Abro minha boca automaticamente para
dizer: “E seu pai? Por que você nunca liga
p r a ele?” Mas a fecho de novo. Não,
Poppy. Péssima ideia.
— Ah, deixaram um recado de voz
mais cedo — digo, me lembrando de
repente. — Sobre lipoaspiração ou
alguma coisa assim, eu acho. Não era pra
você?
— Lipoaspiração? — repete ele,
incrédulo. — Não que eu saiba.
Ele não precisa parecer tão
debochado. Eu só estava perguntando.
Devia ser para Violet. Não que ela deva
precisar de lipoaspiração se foi ser
modelo.
— Então... combinado? Temos um
acordo?
Ele fica em silêncio por alguns
segundos, e eu o imagino olhando com
raiva para o celular. Não tenho
exatamente a sensação de que ele está
gostando desse acordo. Mas que escolha
ele tem?
— Vou pedir que o endereço de e-mail
da assistente seja transferido para a minha
caixa de entrada — diz ele com irritação,
quase que para si mesmo. — Vou falar
com o pessoal técnico amanhã. Mas as
mensagens de texto vão continuar
chegando aí. Se eu perder alguma...
— Não vai! Olha, eu sei que não é o
ideal — digo, tentando acalmá-lo. — E
sinto muito. Mas estou realmente
desesperada. Todos os funcionários do
hotel estão com este número... todas as
faxineiras... é a minha única esperança. Só
por alguns dias. E prometo que vou
encaminhar todas as mensagens que
chegarem. Pela honra de uma Brownie.
— O quê de uma Brownie? — Ele
parece perplexo.
— Honra! Os Guias Brownie? Das
escoteiras? Você levanta uma das mãos e
faz o sinal e um juramento... Espera, vou
te mostrar. — Eu desligo o telefone.
Há um espelho sujo à minha frente no
ônibus. Faço uma pose em frente a ele,
segurando o celular numa das mãos, e
reproduzo o sinal Brownie na outra com
meu melhor sorriso de “sou uma pessoa
sã”. Tiro uma foto e mando como
mensagem para o Celular de Sam.
Cinco segundos depois chega uma
mensagem de texto.
Eu poderia mandar isso pra polícia te prender.
Sinto uma onda de alívio. Poderia. O
que significa que ele não vai fazer isso.
Eu respondo:
Agradeço muito, muito mesmo. Tks.
Mas nenhuma resposta chega.
Notas
7. O rei leão. Natasha conseguiu os ingressos de
graça. Achei que ia ser uma bobeirinha para
crianças, mas foi sensacional.
8. Eu acho que dá.
9. Nunca tive muita certeza do que isso quer
dizer.
10. Então talvez não seja pervertido.
11. OK, não como a Beyoncé. Como eu imitando
a Beyoncé.
12. Não livros com enredo, a propósito. Livros
com notas de rodapé. Livros sobre assuntos,
como história e antropologia e relativismo
cultural no Turcomenistão.
13. Tenho curiosidade em saber se todos tomam
óleo de peixe. Preciso me lembrar de perguntar.
14. Não me pergunte. Prestei muita atenção e
mesmo assim não consegui entender como eles
podiam discordar. Acho que o apresentador
também não conseguiu acompanhar.
15. Magnus me disse depois que ele estava
brincando. Mas não pareceu ser uma brincadeira.
16. Nunca li nada de Proust. Não sei por que
toquei no nome dele.
17. Eu sei. Já falei isso com ele, um milhão de
vezes.
18. Não a ponto de fazer rabo de cavalo, o que
seria nojento. Só um pouco comprido.
19. Acho que Annalise nunca me perdoou. Na
cabeça dela, se não tivesse trocado os horários
dos clientes, ela estaria se casando com ele
agora.
20. Está vendo? Só se fala em notas de rodapé.
21. Supondo que ele mora num pequeno chalé.
Ele dá a impressão de que mora. E sozinho, talvez
com um cachorro fiel como companhia.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
Capitulo 2
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às 16:54
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