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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Capitulo 2

Pisco algumas vezes e volto a olhar, mas

ele ainda está lá, meio escondido entre

alguns folhetos da conferência e um copo

do Starbucks. O que um celular está

fazendo numa lata de lixo?

Olho ao redor para ver se alguém está

me observando, depois enfio o braço com

cuidado na lixeira e o pego. Está com

algumas gotas de café em cima, mas

parece perfeito. É um celular bom. Um

Nokia. Novo.

Eu me viro cautelosamente e noto o

saguão lotado. Ninguém está dando nem

um pingo de atenção para mim. Nem tem

alguém correndo e dizendo: “Olha ali meu

celular!” E estou andando por esta área há

uns dez minutos. Quem jogou esse celular

nesta lixeira fez isso há algum tempo.

Tem um adesivo na parte de trás do

celular com um Grupo de Consultoria

White Globe impresso em letras pequenas

e um número. Alguém o jogou fora? Será

que está quebrado? Aperto o botão de

ligar e a tela acende. Parece estar

funcionando perfeitamente bem.

Uma vozinha na minha mente me diz

que devo entregá-lo. Que devo ir à

recepção e dizer: “Com licença, acho que

alguém perdeu este celular.” É o que eu

deveria fazer. Apenas andar até a

recepção, neste momento, como qualquer

cidadão responsável e com consciência

cívica...

Meus pés não se mexem nem um

centímetro. Minha mão se fecha ao redor

do celular de forma protetora. O problema

é que preciso de um celular. Aposto que o

Grupo de Consultoria White Globe, seja

lá quem for, tem milhões de celulares. E

não o achei no chão nem no banheiro, não

é? Estava numa lixeira. Coisas jogadas na

lixeira são lixo. Não são de ninguém.

Foram descartadas no mundo. Essa é a

regra.

Olho novamente dentro da lata de lixo

e vejo um cordão vermelho, igual ao que

há nos pescoços dos caras da conferência.

Dou uma olhada para ter certeza de que o

concierge não está vendo, então enfio a

mão de novo na lata de lixo e pego um

crachá. A foto de uma garota

deslumbrante parece me encarar, sob a

qual está impresso: Violet Russell, Grupo

de Consultoria White Globe.

Estou criando uma teoria muito boa

agora. Eu poderia ser Poirot. Esse é o

celular de Violet Russell e ela o jogou

fora. Por... algum motivo.

Bom, a culpa é dela. Não minha.

O telefone toca de repente e eu levo um

susto. Merda! Está vivo. O toque começa

no volume máximo, e é a música “Single

Ladies”, da Beyoncé. Aperto rapidinho o

botão “ignorar”, mas logo depois ele toca

de novo, alto e inconfundível.

Não tem controle de volume nessa

porcaria? Algumas executivas que

estavam ali perto se viraram para olhar e

fico tão perturbada que aperto o botão de

atender em vez de o de ignorar. As

executivas ainda estão olhando para mim,

então levo o celular ao ouvido e me viro.

— A pessoa para quem você ligou não

está disponível no momento — digo,

tentando imitar uma voz gravada. — Por

favor, deixe seu recado após o bip. —

Isso vai dispensar seja lá quem for.

— Onde você está, porra? — Uma voz

estável e educada de homem começa a

falar e eu quase grito de susto. Funcionou!

Ele acha que sou a caixa postal! —

Acabei de conversar com Scottie. Ele tem

um contato que acha que pode fazer. Vai

ser como uma cirurgia por vídeo. Ele é

bom. Não vai deixar vestígios.

Não ouso respirar. Nem coçar o nariz,

onde de repente fiquei com uma coceira

insuportável.

— Beleza — diz o homem. — Então, o

que quer que faça, tome cuidado, porra.

Ele desliga e eu fico olhando para o

celular, atônita. Nunca achei que a pessoa

fosse mesmo deixar um recado.

Agora me sinto um pouco culpada. Ele

deixou mesmo um recado na caixa postal,

e Violet não vai receber. Quero dizer, não

é culpa minha ela ter jogado o celular

fora, mas mesmo assim... Por impulso,

procuro uma caneta na minha bolsa e pego

a única coisa que tenho onde posso

escrever, um velho programa de teatro.7

Eu rabisco: “Scottie tem um contato,

cirurgia por vídeo, sem vestígios, tome

cuidado, porra.”

Só Deus sabe sobre o que era o

recado. Lipoaspiração, talvez? Enfim, não

importa. A questão é, se algum dia eu

encontrar essa tal de Violet, vou poder

dar o recado.

Antes que o telefone possa tocar de

novo, corro até a mesa do concierge, que

está milagrosamente vazia.

— Oi — digo, sem fôlego. — Eu de

novo. Alguém achou meu anel?

— Posso garantir, senhora — diz ele

com um sorriso nada amistoso —, que

teríamos avisado se tivéssemos

encontrado. Temos o número do seu

celular...

— Não têm, não! — interrompo-o de

maneira quase triunfante. — Aí é que está

o problema! O número que te dei... hum...

já era. Morreu. De verdade. — A última

coisa que quero que ele faça é ligar para o

cara de capuz e mencionar um anel de

esmeralda valiosíssimo. — Por favor, não

liga para aquele número. Pode substituir o

que te dei por esse? — Copio

cuidadosamente o número que está escrito

na parte de trás do celular da Consultoria

White Globe. — Na verdade, só para

garantir... posso testar? — Estico a mão

para o telefone do hotel e digito o número

impresso. Um segundo depois, a voz de

Beyoncé começa a berrar do celular.

Tudo bem. Pelo menos posso relaxar um

pouco. Tenho um número.

— Mais alguma coisa, senhora?

O concierge está começando a parecer

irritado e tem uma fila se formando atrás

de mim. Agradeço outra vez e vou até o

sofá mais próximo, tomada pela

adrenalina. Tenho um celular e um plano.

Só levo cinco minutos para escrever o

número do meu novo telefone em vinte

folhas de papel do hotel, com “POPPY

WYATT – ANEL DE ESMERALDA, LIGUE, POR

FAVOR!!!!” em enormes letras de forma.

Para minha irritação, as portas do salão

agora estão trancadas (embora eu tenha

certeza de estar ouvindo as faxineiras

ainda lá dentro), então sou obrigada a

vagar pelos corredores do hotel, pelo

salão de chá, pelos toaletes femininos e

até pelo spa, entregando meu número para

cada funcionário do hotel que encontro e

explicando a história.

Ligo para a polícia e informo o novo

número. Mando uma mensagem de texto

para Ruby, cujo número sei de cor,

dizendo:

Oi! Roubaram meu telefone. Este eh meu n

novo. Pode passar pra todo mundo? Algum

sinal do anel???

Em seguida, me jogo outra vez no sofá,

exausta. Sinto como se tivesse passado o

dia morando neste hotel. Eu também

deveria ligar para Magnus para dar o

número do celular a ele, mas ainda não

consigo encarar isso. Tenho uma

convicção irracional de que ele

conseguirá perceber apenas pelo meu tom

de voz que o anel sumiu. Ele vai sentir

que meu dedo está sem nada assim que eu

disser “Oi”.

Por favor, anel, aparece. Por favor.

POR FAVOR, aparece...

Eu me reclino no sofá, fecho os olhos e

tento enviar uma mensagem telepática

pelo cosmos. Então, quando a voz de

Beyoncé começa a tocar novamente, dou

um pulo de susto. Talvez seja ele! Meu

anel! Alguém encontrou! Nem olho na tela

antes de apertar o botão para atender e

falar um “alô” empolgado.

— Violet? — Uma voz de homem no

meu ouvido. Não é o homem que ligou

antes, é um cara com voz mais grave. Ele

parece meio mal-humorado, se é que dá

para perceber isso ao ouvir apenas três

sílabas.8 Ele também respira pesado, o

que significa que é pervertido ou que está

fazendo algum tipo de exercício. — Você

está no lobby? O grupo japonês ainda está

aí?

Por uma reação automática, olho ao

redor. Tem vários japoneses perto das

portas.

— Estão sim — respondo. — Mas não

sou a Violet. Este celular não é mais dela.

Desculpa. Você pode de repente avisar

por aí que o número dela mudou?

Preciso tirar os amigos da Violet da

jogada. Não dá para eles ficarem me

ligando a cada cinco segundos.

— Perdão, mas quem é? — pergunta o

homem. — Por que atendeu esse telefone?

Onde está a Violet?

— Esse celular é meu agora, está em

minha posse — digo com mais confiança

do que sinto. Mas é verdade. Dono é

quem tem posse de um objeto.9

— Em sua posse? Que porra é essa que

você está... Ai, meu Deus. — Ele fala

mais alguns impropérios e consigo

claramente ouvir passos ao longe. Parece

que ele está correndo escada abaixo.10 —

Só me diz se eles estão indo embora?

— Os japoneses? — Semicerro os

olhos para ver melhor o grupo. — Talvez.

Não tenho certeza.

— Tem um cara baixinho com eles?

Acima do peso? De cabelo volumoso?

— Está falando do cara de terno azul?

Sim, ele está bem na minha frente. Parece

irritado. Agora está vestindo a capa de

chuva.

O japonês baixinho pegou um casaco

Burberry da mão de um colega. Está com

um olhar de raiva enquanto se veste, e um

fluxo constante de palavras furiosas em

japonês sai da boca dele, e todos os seus

amigos assentem com nervosismo.

— Não! — A exclamação do homem

ao telefone me pega de surpresa. — Ele

não pode ir embora.

— Pois é, desculpa, mas ele está indo.

— Você tem que impedir. Vai lá e não

deixa ele sair do hotel. Corre lá agora.

Faz qualquer coisa para não deixar.

— O quê? — Eu olho para o celular.

— Olha só, desculpa, mas eu nunca nem te

vi...

— Eu também não — responde ele. —

E quem é você, afinal? É amiga da Violet?

Pode me dizer exatamente por que ela

decidiu largar o emprego no meio da

maior conferência do ano? Será que ela

acha que de repente não preciso mais de

uma assistente?

A-rá. Então Violet é assistente dele.

Faz sentido. E ela largou o cara na mão!

Bom, não estou surpresa, ele é tão

mandão.

— De qualquer jeito, não importa. —

Ele mesmo interrompe o que estava

dizendo. — A questão é que estou na

escadaria, no nono andar e o elevador

quebrou. Chego aí embaixo em menos de

três minutos, e você precisa segurar

Yuichi Yamasaki até eu chegar. Seja lá

quem você for.

Que coragem.

— Senão o quê? — pergunto.

— Senão um ano de uma cuidadosa

negociação vai por água abaixo por causa

de uma confusão ridícula. O maior

negócio do ano vai desmoronar. Uma

equipe de vinte pessoas vai perder o

emprego. — A voz dele é incansável. —

Gerentes seniores, secretárias, todos. Só

porque não consigo chegar aí embaixo

rápido o suficiente e a única pessoa que

poderia ajudar não quer ajudar.

Ah, droga.

— Tudo bem! — digo, irritada. — Vou

fazer o melhor que puder. Como é o nome

dele mesmo?

— Yamasaki.

— Espera! — Aumento o tom de voz

enquanto corro pelo saguão. — Por favor!

Sr. Yamasaki? O senhor poderia esperar

um minuto?

O Sr. Yamasaki se vira, duvidoso, e

alguns funcionários puxa-sacos dão um

passo à frente e ficam dos dois lados dele,

para protegê-lo. Ele tem o rosto largo,

ainda enrugado de raiva, e um pescoço

grosso ao redor do qual está enrolando um

cachecol de seda. Tenho a sensação de

que ele não quer bater papo.

Não tenho ideia do que dizer depois.

Não falo japonês, não sei nada sobre

negócios japoneses nem sobre cultura

japonesa. Além de sushi. Mas não posso

exatamente ir até ele e dizer “sushi!” do

nada. Seria como chegar perto de um

executivo americano bambambã e dizer

“hambúrguer”.

— Sou... uma grande fã — falei de

improviso. — Do seu trabalho. O senhor

pode me dar um autógrafo?

Ele parece perplexo, e um dos colegas

sussurra a tradução no ouvido dele.

Imediatamente sua testa se desfranze e ele

faz uma reverência para mim.

Eu retribuo a reverência com cuidado,

e ele estala os dedos e dá alguma

instrução. Um momento depois, uma bela

pasta de couro está aberta em frente a ele

e o Sr. Yamasaki escreve alguma coisa

elaborada em japonês.

— Ele ainda está aí? — A voz do

estranho emana de repente do celular.

— Está — murmuro. — Por pouco.

Onde você está? — Dou um sorriso largo

para o Sr. Yamasaki.

— No quinto andar. Segura o japonês

aí. Independente do que tenha que fazer.

O Sr. Yamasaki me entrega o pedaço

de papel, coloca a tampa da caneta, faz

outra reverência e se prepara para sair

andando.

— Espera! — falo, desesperada. —

Será que eu posso... mostrar uma coisa

pra você?

— O Sr. Yamasaki está muito ocupado.

— Um dos colegas dele, usando óculos de

aço e a camisa mais branca que já vi, se

vira para mim. — Faça a gentileza de

entrar em contato com nosso escritório.

Estão se afastando de novo. O que faço

agora? Não posso pedir outro autógrafo.

Não posso derrubá-lo como num jogo de

rúgbi. Preciso chamar a atenção dele de

alguma maneira...

— Tenho um comunicado especial a

fazer! — exclamo, correndo atrás deles.

— Sou um telegrama cantado! Trago um

recado dos muitos fãs do Sr. Yamasaki.

Seria muito deselegante da parte dele com

os fãs se não quiser me ouvir.

A palavra “deselegância” parece fazêlos

parar de repente. Estão franzindo a

testa e trocando olhares confusos.

— Um telegrama cantado? — pergunta

com desconfiança o homem de óculos de

aço.

— Tipo um Gorillagram — continuo.

— Só que cantado.

Não sei se ajudou em alguma coisa

associar esses serviços de recado, com

alguém fantasiado de gorila, ao que estou

querendo fazer.

O intérprete murmura freneticamente

no ouvido do Sr. Yamasaki, e depois de

alguns minutos ele diz para mim:

— Pode se apresentar.

O Sr. Yamasaki se vira e todos os

colegas dele também, cruzando os braços,

em expectativa, e formando uma fileira,

lado a lado. Ao redor do saguão posso

ver alguns olhares interessados partindo

de outros grupos de executivos.

— Onde você está? — murmuro

desesperadamente ao telefone.

— No terceiro andar — diz a voz do

homem depois de um momento. — Meio

minuto. Não deixa ele fugir.

— Comece — diz o homem de óculos

de aço de maneira incisiva.

Alguns outros hóspedes do hotel que

estão no saguão pararam para olhar. Ai,

Deus. Como eu fui me meter nisso?

Primeiro, não sei cantar. Segundo, o que

canto para um executivo japonês que

nunca vi antes? Terceiro, por que falei

telegrama cantado?

Mas se eu não fizer alguma coisa logo,

vinte pessoas podem perder o emprego.

Faço uma reverência exagerada só

para ganhar mais tempo e todos os

japoneses fazem uma reverência em

resposta.

— Comece — repete o homem de

óculos de aço, com os olhos brilhando

ameaçadoramente.

Eu respiro fundo. Vamos lá. Não

importa o que eu fizer. Só precisa durar

meio minuto. Depois posso sair correndo

e eles nunca vão me ver de novo.

— Sr. Yamasaki... — começo com

hesitação no ritmo de “Single Ladies”. —

Sr. Yamasaki. Sr. Yamasaki, Sr.

Yamasaki. — Balanço os quadris e os

ombros para ele exatamente como a

Beyoncé.11 — Sr. Yamasaki, Sr.

Yamasaki.

Na verdade, isso é bem fácil. Não

preciso de letra, posso ficar cantando “Sr.

Yamasaki” sem parar. Depois de um

tempinho, alguns dos japoneses até

começam a cantar junto e a dar tapinhas

nas costas do Sr. Yamasaki.

— Sr. Yamasaki, Sr. Yamasaki. Sr.

Yamasaki, Sr. Yamasaki. — Levanto o

dedo e fico balançando para ele com uma

piscadela. — Ooh-ooh-ooh... ooh-oohooh...

A música é ridiculamente contagiante.

Todos os japoneses estão cantando agora,

menos o Sr. Yamasaki, que está ali de pé

com cara de satisfação. Um pessoal da

conferência que estava por perto se juntou

à cantoria e consigo ouvir um deles

dizendo:

— Isso é um daqueles flash mobs?

— Sr. Yamasaki, Sr. Yamasaki, Sr.

Yamasaki... Onde você está? — murmuro

ao telefone, ainda sorrindo com alegria.

— Assistindo.

— O quê? — Eu levanto a cabeça e

percorro o saguão com o olhar.

De repente, meu olhar se fixa num

homem de pé sozinho, a uns 30 metros de

distância. Ele usa um terno escuro e tem

cabelo preto e cheio, que está todo

bagunçado, além de estar com um telefone

no ouvido. Mesmo de longe consigo

perceber que está rindo.

— Há quanto tempo está aí? —

pergunto, furiosa.

— Acabei de chegar. Não quis

interromper. Ótimo trabalho, aliás —

acrescenta ele. — Acho que você

convenceu Yamasaki a nosso favor nesse

momento.

— Obrigada — digo com sarcasmo. —

Fico feliz em poder ajudar. Ele é todo

seu. — Faço uma reverência para o Sr.

Yamasaki com um floreio, me viro e sigo

rapidamente para uma saída, ignorando os

gritos desapontados dos japoneses. Tenho

coisas mais importantes com que me

preocupar do que estranhos arrogantes e

seus negócios idiotas.

— Espera! — A voz do homem me

segue pelo aparelho. — O telefone. É da

minha assistente.

— Bom, então ela não deveria ter

jogado o aparelho fora — respondo,

empurrando as portas de vidro. —

Achado não é roubado.

Há 12 paradas do metrô de Knightsbridge

até a casa dos pais de Magnus no norte de

Londres, e assim que saio na superfície,

olho o celular. Está piscando com novas

mensagens, umas dez de texto e uns vinte

e-mails, mas só há cinco mensagens de

texto para mim e nenhuma delas com

novidades sobre o anel. Uma é da polícia,

e meu coração dá um salto de esperança,

mas é só para confirmar que registrei um

boletim de ocorrência e para perguntar se

quero uma visita do oficial de apoio às

vítimas.

O resto são mensagens de texto e emails

para Violet. Conforme vou olhando,

percebo que “Sam” aparece no assunto de

vários e-mails. Com a sensação de ser

Poirot de novo, verifico a função

“chamadas recebidas” e, obviamente, o

último número que ligou para este celular

foi o “Sam Celular”. Então é ele. O chefe

da Violet. O cara de cabelo escuro e

desgrenhado. E para provar, o e-mail dela

é

assistentedesamroxton@consultoriawhiteglobe.Por pura curiosidade, clico num dos emails.

É de

jennasmith@grantlyassetmanagement.com

e o assunto é: “Re: Jantar?”

Obrigada, Violet. Por favor, não comente

nada disso com Sam. Estou meio sem jeito

agora!

Opa. Por que ela está sem jeito? Antes

que eu consiga me impedir, mudei de tela

para ler o e-mail anterior, que foi enviado

ontem.

Na verdade, Jenna, você precisa saber de uma

coisa: Sam está noivo. Atenciosamente,

Violet.

Ele está noivo. Interessante. Enquanto

releio as palavras, sinto uma reação

estranha dentro de mim que não consigo

identificar. Surpresa?

Mas por que eu deveria estar surpresa?

Nem conheço o cara.

Muito bem, agora eu tenho que saber a

história toda. Por que Jenna está sem

jeito? O que aconteceu? Volto ainda mais

alguns e-mails e encontro um longo, o

primeiro, de Jenna, que conheceu esse

Sam Roxton num evento de trabalho, ficou

doida por ele e o convidou para jantar

duas semanas atrás, mas ele não retornou

as ligações.

... tentei novamente ontem... talvez esteja

ligando para o número errado... alguém me

disse que ele é famoso e que a assistente dele

é o melhor caminho para fazer contato... mil

desculpas por incomodar... talvez só me diz

se é possível...

Coitadinha. Estou muito indignada por

ela. Por que ele não respondeu? Qual é a

dificuldade de enviar um e-mail rápido

dizendo “Não, obrigado”? E ainda por

cima ele é noivo, pelo amor de Deus.

Enfim. Deixa para lá. De repente, me

dou conta de que estou xeretando a caixa

de e-mails de uma pessoa quando tenho

tantas outras coisas mais importantes em

que pensar. Prioridades, Poppy. Preciso

comprar vinho para os pais de Magnus. E

um cartão de boas-vindas. E, se eu não

achar o anel nos próximos vinte minutos...

um par de luvas.

Desastre. Desastre. Acontece que luvas

não são vendidas em abril, no auge da

primavera. As únicas que consegui

encontrar estavam no depósito de uma

loja Accessorize. Estoque antigo de Natal,

só disponíveis no tamanho pequeno.

Não consigo acreditar que estou

mesmo planejando cumprimentar meus

futuros sogros com luvas de lã vermelha

com desenhos de renas e apertadas

demais. Com franjas.

Mas não tenho escolha. É isso ou

entrar com as mãos nuas.

Quando inicio a longa subida da colina

que leva à casa deles, começo a me sentir

enjoada de verdade. Não é só o anel. É

toda a coisa dos futuros sogros. Dobro a

esquina e vejo que todas as janelas da

casa estão acesas. Eles estão em casa.

Nunca vi uma casa tão adequada a uma

família quanto a dos Tavish. É mais velha

e maior do que qualquer outra casa da rua,

e olha para elas de cima, de sua posição

superior. Há teixos e uma araucária

chilena no jardim. Os tijolos são cobertos

de hera e as janelas ainda são as de

madeira originais de 1835. Dentro, há

papel de parede William Morris dos anos

1960, e o piso é coberto de tapetes turcos.

Mas não dá para ver de fato os tapetes

porque costumam estar sob camadas de

documentos e manuscritos velhos que

ninguém se dá o trabalho de recolher.

Ninguém na família Tavish é muito fã de

arrumação. Uma vez achei um ovo cozido

fossilizado numa cama do quarto de

hóspedes, ainda no oveiro, com uma

torrada ressecada como escudeira. Já

devia ter feito aniversário de um ano.

E em todos os cantos, por toda a casa,

há livros. Colocados em três fileiras de

profundidade nas prateleiras, empilhados

no chão e nas laterais de cada banheira

manchada de limo. Antony escreve livros,

Wanda escreve livros, Magnus escreve

livros e o irmão mais velho dele, Conrad,

escreve livros. Até mesmo a mulher de

Conrad, Margot, escreve livros.12

E isso é ótimo. Quero dizer, é uma

coisa maravilhosa, todos esses gênios

intelectuais numa só família. Mas acaba

fazendo você se sentir um tiquinho de

nada deslocado.

Não me entenda mal, eu me acho bem

inteligente. Sabe, para uma pessoa normal

que frequentou a escola e a faculdade e

tem um emprego e tal. Mas essas pessoas

não são normais, elas estão em outro

nível. Elas têm supercérebros. São a

versão acadêmica de Os Incríveis.13 Só

me encontrei com os pais dele algumas

vezes, quando voltaram a Londres por

uma semana para Antony dar uma palestra

importante, mas foi o suficiente para eu

perceber. Enquanto Antony fazia a

palestra sobre teoria política, Wanda

estava apresentando um estudo sobre o

judaísmo feminista para um grupo de

reflexão, e depois os dois apareceram no

The Culture Show, dando opiniões

contrárias sobre um documentário que

tratava da influência da Renascença.14

Esse foi o contexto de quando nos

conhecemos. Sem pressão nenhuma, ou

qualquer coisa do tipo.

Fui apresentada aos pais de vários

namorados ao longo dos anos, mas essa

era com certeza a pior experiência de

todas. Tínhamos acabado de apertar as

mãos e conversado sobre bobeiras e eu

estava contando com orgulho para Wanda

em qual faculdade eu tinha estudado

quando Antony olhou por cima dos óculos

meia-lua e disse:

— Diploma em fisioterapia. Que

divertido.

Eu me senti imediatamente arrasada.

Não sabia o que falar. Na verdade, fiquei

tão sem reação que saí de onde estávamos

para ir ao banheiro.15

Depois disso, óbvio que fiquei

travada. Aqueles três dias foram pura

tortura. Quanto mais intelectual a

conversa ia se tornando, mais

constrangida e incapaz de falar eu ficava.

Meu segundo pior momento: pronunciar

“Proust” errado e todo mundo trocar

olhares.16 Meu pior momento de todos:

quando estávamos assistindo University

Challenge juntos na sala de TV e surgiu o

assunto ossos. Minha especialidade! Eu

estudei isso! Sei os nomes em latim e

tudo! Mas quando estava pegando fôlego

para responder a primeira pergunta,

Antony já tinha dado a resposta certa. Fui

mais rápida na segunda vez... mas ele foi

ainda mais rápido do que eu. O programa

todo se passou como se fosse uma

corrida, e ele ganhou. Ao final, ele olhou

para mim e perguntou:

— Não ensinam anatomia na faculdade

de fisioterapia, Poppy?

Eu me senti humilhada.

Magnus diz que me ama, não ao meu

cérebro, e que tenho que ignorar os pais

dele. E Natasha disse para eu pensar na

pedra do anel e na casa de Hampstead e

n a Villa da Toscana. Essa é a Natasha.

Minha abordagem tem sido a seguinte:

simplesmente não pensar neles. Estava

funcionando. Eles estavam quietinhos em

Chicago, a milhares de quilômetros de

distância.

Mas agora, estão de volta.

Ai, Deus. E eu ainda estou um pouco

abalada com aquela história do “Proust”.

(Prust? Prost?) E não revisei os nomes

dos ossos em latim. E estou usando luvas

vermelhas de lã com desenho de renas em

pleno abril. Com franjas.

Minhas pernas estão tremendo quando

toco a campainha. Tremendo mesmo. Eu

me sinto como o espantalho em O mágico

de Oz. A qualquer minuto vou cair no

chão e Wanda vai tacar fogo em mim por

ter perdido o anel.

Para, Poppy. Está tudo bem. Ninguém

vai desconfiar de nada. A minha história é

que queimei a mão. Essa é a minha

história.

— Oi, Poppy!

— Felix! Oi!

Estou tão aliviada de ser Felix abrindo

a porta que meu cumprimento sai como um

suspiro trêmulo.

Felix é o caçula da família. Só tem 17

anos e ainda está no colégio. Na verdade,

Magnus está morando naquela casa com

ele durante o tempo em que os pais estão

fora, como se fosse uma babá, e fui morar

lá também assim que ficamos noivos. Não

que Felix precise de uma babá. Ele é

completamente independente, lê o tempo

todo e nunca nem percebemos que ele está

em casa. Uma vez tentei bater um papinho

legal sobre drogas com ele. Felix

educadamente me corrigiu em cada fato

que mencionei, depois disse que reparou

que bebo Red Bull acima do limite

recomendado e perguntou se eu não

achava que talvez fosse viciada? Aquela

foi a última vez em que tentei bancar a

irmã mais velha.

Mas enfim... Tudo isso vai terminar

agora que Antony e Wanda estão voltando

dos Estados Unidos. Voltei a morar no

meu apartamento e começamos a procurar

um lugar para alugar. Magnus era a favor

de continuarmos aqui. Ele achou que

podíamos ficar no quarto extra com

banheiro que tem no último andar, e isso

não seria conveniente, porque assim ele

poderia continuar a usar a biblioteca do

pai?

Ele ficou maluco? Não vou viver sob o

mesmo teto que os Tavish de jeito

nenhum.

Sigo Felix até a cozinha, onde Magnus

está sentado à vontade numa cadeira,

gesticulando para uma página impressa e

dizendo:

— Acho que seu argumento está

equivocado aqui. Segundo parágrafo.

Não importa como Magnus se senta,

não importa o que ele faça, de alguma

maneira sempre consegue parecer

elegante. Os pés com sapatos de camurça

estão em cima de outra cadeira, ele está

no meio de um cigarro17 e seu cabelo está

penteado para trás como uma cachoeira.

Todos os Tavish têm a mesma cor de

cabelo, como uma família de raposas.

Wanda até tinge seus fios com hena. Mas

Magnus é o mais bonito de todos, e não

estou falando isso só porque vou me casar

com ele. A pele dele tem sardas, mas

também se bronzeia muito fácil, e o

cabelo castanho-avermelhado escuro

parece saído de um comercial de produto

de cabelo. É por isso que deixa o cabelo

comprido.18 Ele é bem vaidoso quanto a

isso.

Além do mais, apesar de ser um

acadêmico, não é um cara antiquado que

fica em casa lendo livros o tempo todo.

Ele esquia muito bem e vai me ensinar.

Na verdade, foi assim que nos

conhecemos. Ele tinha torcido o pulso

esquiando e nos procurou para fazer

fisioterapia por indicação médica. Ele

deveria se consultar com Annalise, mas

ela o trocou por um dos clientes fixos e

ele acabou vindo parar comigo. Na

semana seguinte ele me convidou para

sair e depois de um mês, me pediu em

casamento. Um mês!19

Agora Magnus olha para a frente e seu

rosto se ilumina.

— Amor! Como está minha linda? Vem

cá. — Ele me chama para me dar um

beijo, depois coloca as mãos ao redor do

meu rosto, como sempre faz.

— Oi. — Dou um sorriso forçado. —

E aí, seus pais estão aqui? Como foi o

voo? Mal posso esperar para ver os dois.

Estou tentando parecer o mais animada

possível, embora minhas pernas estejam

querendo sair correndo pela porta colina

abaixo.

— Você não recebeu minha mensagem

de texto? — Magnus parece intrigado.

— Que mensagem de texto? Ah. — De

repente me dou conta. — Claro. Eu perdi

meu celular. Estou com um número novo.

Deixa eu te dar.

— Você perdeu o celular? — Magnus

fica me olhando. — O que houve?

— Nada! — digo com alegria. — Só...

perdi aquele e precisei de outro. Nada de

mais. Nada dramático.

Decidi seguir a estratégia de que

quanto menos eu disser para Magnus

agora, melhor. Não quero entrar numa

discussão sobre o motivo de estar

agarrada desesperadamente a um celular

qualquer que achei numa lata de lixo.

— E aí, o que dizia a mensagem? —

acrescento rapidamente, tentando fazer a

conversa seguir em frente.

— O avião dos meus pais foi

desviado. Eles tiveram que ir para

Manchester. Só vão chegar amanhã.

Desviado?

Manchester?

Ai, meu Deus. Estou salva! Ganhei

tempo! Minhas pernas não param de

tremer! Quero cantar o coral de Aleluia.

Ma-an-chester! Ma-an-chester!

— Meu Deus, que pena. — Estou

fazendo um esforço enorme para ficar com

cara de decepção. — Pobrezinhos.

Manchester. Fica a quilômetros de

distância! Eu também estava muito

ansiosa para ver os dois. Que droga.

Acho que fui bem convincente. Felix

me lança um olhar estranho, mas Magnus

já pegou o texto impresso de novo. Não

comentou sobre minhas luvas. Nem Felix.

Talvez eu possa relaxar um pouco.

— Então... hum... rapazes. — Dou uma

olhada no lugar. — E a cozinha, hein?

Magnus e Felix disseram que iam

arrumar naquela tarde, mas a cozinha

parece que foi bombardeada. Há caixas

de comida de restaurante sobre a mesa e

uma pilha de livros em cima do fogão, e

até outra apoiada numa frigideira.

— Seus pais vão voltar amanhã. Não é

melhor a gente fazer alguma coisa?

Magnus permanece impassível.

— Eles não vão ligar.

Para ele é supertranquilo dizer isso.

Mas eu sou a nora (quase) que mora aqui

e vai levar a culpa.

Magnus e Felix começaram a falar

sobre uma nota de rodapé,20 então vou até

o fogão e começo a dar uma arrumada

rápida. Nem ouso tirar as luvas, mas os

rapazes não estão prestando a menor

atenção em mim, ainda bem. Pelo menos

sei que o resto da casa está OK. Dei uma

olhada em tudo ontem, troquei as

embalagens velhas de sabonete líquido e

comprei uma cortina nova para o

banheiro. O melhor foi que encontrei

algumas anêmonas para o estudo de

Wanda. Todo mundo sabe que ela adora

anêmonas. Até escreveu um artigo sobre

“Anêmonas na Literatura”. (O que é típico

dessa família: você não pode

simplesmente gostar de uma coisa, tem

que virar o maior especialista nela.)

Magnus e Felix ainda estão

concentrados na conversa enquanto

termino. A casa está arrumada. Ninguém

me perguntou sobre o anel. Vou parar

enquanto estou ganhando.

— Então vou para casa — digo

casualmente e dou um beijo na testa de

Magnus. — Fica aqui fazendo companhia

para o Felix. Dá um oi de boas-vindas aos

seus pais por mim.

— Dorme aqui! — Magnus passa um

braço pela minha cintura e me puxa. —

Eles vão querer ver você.

— Não, recebam seus pais vocês.

Amanhã eu passo aqui. — Dou um sorriso

intenso, para afastar a atenção do fato de

que estou indo em direção à porta, com as

mãos atrás das costas. — Vamos ter muito

tempo.

— Eu não culpo você — diz Felix,

olhando para a frente pela primeira vez

desde que abriu a porta para mim.

— Como? — pergunto, um pouco

confusa. — Não me culpa por quê?

— Por não querer ficar. — Ele dá de

ombros. — Acho que você tem sido

extremamente otimista, levando em

consideração a reação deles. Estava

querendo te dizer isso há semanas. Você

deve ser uma pessoa muito boa, Poppy.

Do que ele está falando?

— Não sei... O que você quer dizer?

— Eu me viro para Magnus em busca de

ajuda.

— Não é nada — diz ele, rápido

demais. Mas Felix está olhando para o

irmão mais velho com uma luz de

entendimento nos olhos.

— Ai, meu Deus. Você não contou a

ela?

— Felix, cala a boca.

— Não contou, não é? Isso não é justo,

é, Mag?

— Me contou o quê? — Viro o olhar

de um rosto para o outro. — O quê?

— Não é nada. — Magnus parece

perturbado. — Só... — Ele me olha nos

olhos, por fim. — Tudo bem, meus pais

não ficaram exatamente felizes ao ouvirem

que estamos noivos. Só isso.

Por um momento, não sei como reagir.

Eu olho para ele em silêncio, tentando

processar o que acabei de ouvir.

— Mas você falou... — Não confio na

minha voz. — Você falou que eles ficaram

animados. Disse que estavam

empolgados!

— Eles vão ficar animados — diz ele,

irritado. — Quando tiverem um pouco de

sensatez.

Eles vão ficar?

Meu mundo todo está prestes a

desmoronar. Já era bem ruim quando eu

achava que os pais de Magnus eram

apenas gênios intimidantes. Mas esse

tempo todo eles foram contra o nosso

casamento?

— Você me disse que eles não

conseguiam imaginar uma nora mais doce

e encantadora. — Estou tremendo toda

agora. — Disse que eles me mandaram

lembranças especiais de Chicago! Era

tudo mentira?

— Eu não queria aborrecer você! —

Magnus olha com raiva para Felix. —

Não é nada de mais. Eles vão mudar de

ideia. Só acham que tudo foi muito

rápido... que não conhecem você direito...

São uns idiotas — conclui ele com

desdém. — Falei isso para eles.

— Você brigou com seus pais? — Eu o

encaro, consternada. — Por que não me

contou nada disso?

— Não foi briga — diz ele na

defensiva. — Foi mais... uma desavença.

Uma desavença? Uma desavença?

— Uma desavença é pior do que uma

briga! — grito, apavorada. — É um

milhão de vezes pior! Ai, Deus, eu queria

que você tivesse me contado... O que vou

fazer? Como posso olhar na cara deles?

Eu sabia. Os professores não me

acham boa o bastante. Sou como a garota

da ópera que abre mão do amante por não

ser adequada, depois pega tuberculose e

morre, e bem feito para ela, porque era

tão inferior e burra. Ela provavelmente

também não conseguia pronunciar

“Proust” direito.

— Poppy, fica calma! — disse Magnus

com irritação. Ele fica de pé e me segura

com firmeza pelos ombros. — Foi

exatamente por isso que não contei. É

besteira de família e não tem nada a ver

conosco. Eu te amo. Vamos nos casar.

Vou em frente com isso

independentemente do que qualquer

pessoa diga, seja meus pais, meus amigos

ou qualquer outra pessoa. Nosso

relacionamento é nosso. — A voz dele

está tão firme que começo a relaxar. — E,

seja como for, assim que passarem mais

tempo com você, sei que vão mudar de

ideia. Eu sei.

Não consigo evitar um sorriso

relutante.

— Essa é minha linda garota. —

Magnus me dá um abraço apertado e eu

retribuo, me esforçando para acreditar

nele.

Quando ele se afasta, seu olhar pousa

nas minhas mãos e ele franze a testa,

parecendo perplexo.

— Amor... por que você está de luvas?

Vou ter um colapso nervoso. Vou mesmo.

O desastre do anel quase foi revelado.

Teria acontecido se não fosse por Felix.

Eu estava no meio da minha desculpa

absurda e vacilante sobre a queimadura na

mão, esperando que Magnus desconfiasse

a qualquer momento, quando Felix

bocejou e disse “Vamos para o pub?”, e

Magnus de repente se lembrou de um email

que tinha que enviar antes e todo

mundo se esqueceu das minhas luvas.

E aproveitei a oportunidade para ir

embora. Rapidinho.

Agora estou sentada no ônibus,

olhando para a noite escura, sentindo um

frio por dentro. Perdi o anel. Os Tavish

não querem que eu me case com Magnus.

Meu celular já era. Sinto como se todas as

coisas que me davam segurança tivessem

sido arrancadas de uma vez só.

O telefone no meu bolso começa a

tocar Beyoncé de novo, e eu atendo sem

muitas esperanças.

Realmente, não é nenhuma das minhas

amigas ligando para dizer: “Encontrei!”

Nem a polícia, nem o concierge do hotel.

É ele. Sam Roxton.

— Você fugiu — diz ele, sem

preâmbulos. — Preciso do celular de

volta. Onde você está?

Encantador. Nem um “Muito obrigado

por me ajudar com meu negócio com os

japoneses”.

— De nada — respondo. — Disponha.

— Ah. — Ele parece

momentaneamente constrangido. — É

mesmo. Obrigado. Estou em débito

contigo. Agora como você vai me

devolver o celular? Pode deixar no

escritório ou eu posso mandar um boy

buscar. Onde você está?

Fico em silêncio. Não vou devolver

para ele. Preciso deste número.

— Alô?

— Oi. — Eu seguro o aparelho com

mais força e engulo em seco. — O

problema é que eu preciso desse telefone

emprestado. Só por um tempo.

— Ai, Jesus. — Consigo ouvi-lo

expirar. — Olha, infelizmente não está

disponível para “empréstimo”. É

propriedade da empresa e preciso dele de

volta. Ou será que por “empréstimo” você

quer dizer “roubo”? Porque, acredite,

posso rastrear você, e não vou te pagar

100 libras pelo prazer de fazer isso.

É isso que ele acha? Que quero

dinheiro? Que sou alguma espécie de

sequestradora de telefone?

— Não quero roubar o telefone! —

exclamo, indignada. — Só preciso dele

por alguns dias. Dei o número para todo

mundo, e é uma emergência de verdade...

— Você fez o quê? — Ele parece

desnorteado. — Por que você faria isso?

— Perdi meu anel de noivado. — Mal

consigo suportar falar em voz alta. — É

muito antigo e valioso. E depois meu

celular foi roubado, e fiquei

completamente desesperada, então passei

por uma lata de lixo e ele estava lá. No

lixo — acrescento, para dar ênfase. —

Sua assistente jogou o aparelho fora.

Quando uma coisa vai para a lata de lixo,

é pública, sabe? Qualquer um pode ficar

com ela.

— Que papo furado — responde ele.

— Quem te falou isso?

— É... é de conhecimento geral. —

Tento parecer firme. — Mesmo assim,

por que sua assistente foi embora e jogou

o celular no lixo? Não é uma boa

assistente, se quer saber.

— Não. Não é uma boa assistente. É na

verdade a filha de um amigo que nunca

deveria ter sido contratada para o

emprego. Está trabalhando há três

semanas. Pelo que soube, conseguiu um

contrato de modelo ao meio-dia de hoje.

Um minuto depois, foi embora. Nem se

deu o trabalho de me contar que ia sair.

— Ele parece bem irritado. — Escuta,

senhorita... qual é o seu nome?

— Wyatt. Poppy Wyatt.

— Bem, chega de brincadeira, Poppy.

Eu sinto muito pelo seu anel. Espero que

apareça. Mas esse celular não é um

brinquedinho do qual você pode se

apropriar para seus próprios fins. É um

celular empresarial que recebe mensagens

de negócios o tempo todo. E-mails.

Coisas importantes. Minha assistente

governa minha vida. Preciso dessas

mensagens.

— Eu as encaminho — ofereço no ato.

— Encaminho tudo. Que tal?

— Mas que... — Ele murmura alguma

coisa baixinho. — Tudo bem. Você

venceu. Compro um celular novo para

você. Me dá seu endereço, mando para

lá...

— Preciso deste aqui — digo com

teimosia. — Preciso deste número.

— Pelo amor de...

— Meu plano pode funcionar! —

Minhas palavras saem em turbilhão. —

Tudo que chegar, eu te mando na mesma

hora. Você nem vai saber a diferença!

Você ia ter que fazer isso de qualquer

maneira, não ia? Se perdeu sua assistente,

de que serve o celular de uma assistente?

Assim é melhor. Além do mais, você me

deve uma por eu ter impedido o Sr.

Yamasaki de ir embora. — Não consigo

não mencionar isso. — Você mesmo

falou.

— Não foi isso que eu quis dizer e

você sabe...

— Você não vai perder nada, prometo!

— Interrompo o resmungo irritado dele.

— Vou encaminhar todas as mensagens.

Olha, vou te mostrar, espera só um

pouquinho...

Eu desligo, abro as mensagens que

chegaram no celular desde a manhã e num

minuto encaminho uma a uma para o

celular de Sam. Meus dedos trabalham na

velocidade da luz.

Mensagem de texto de “Vicks Myers”:

encaminhada. Mensagem de texto de “Sir

Nicholas Murray”: encaminhada. É uma

questão de segundos até que eu tenha

encaminhado todas. E os e-mails podem

todos ir para

samroxton@consultoriawhiteglobe.com.

E-mail de “Departamento de RH”:

encaminhado. E-mail de “Tania Phelps”:

encaminhado. E-mail de “Pai”...

Eu hesito por um momento. Preciso

tomar cuidado aqui. Será que é o pai de

Violet ou o de Sam? O endereço no alto

do e-mail é peterr452 @hotmail.com, o

que não ajuda muito.

Digo para mim mesma que é por uma

boa causa e abro para dar uma olhada.

Querido Sam,

Já faz um bom tempo. Penso muito em você.

Fico imaginando o que tem feito, e adoraria

conversar quando desse. Recebeu alguma das

minhas mensagens no celular? Não se

preocupe, sei que você é um homem ocupado.

Se algum dia estiver aqui por perto, você sabe

que pode sempre vir me visitar. Tem um

assunto que preciso discutir com você, uma

coisa bem legal pra falar a verdade, mas,

como falei, não tem pressa.

Com carinho,

seu Pai

Quando chego ao final, fico um pouco

chocada. Sei que esse cara é um estranho

e que não é da minha conta. Mas,

sinceramente. Ele bem que poderia

responder os recados do pai. Qual é a

dificuldade de dedicar meia hora para

conversar com o pai? E o pai dele parece

tão fofo e humilde. Pobre coroa, tendo que

mandar e-mail para a assistente do filho.

Sinto vontade de eu mesma responder.

Sinto vontade de visitá-lo em seu pequeno

chalé.21

Enfim. Não importa. Não é a minha

vida. Aperto o botão de encaminhar e o email

segue junto com os outros. Um

momento depois, Beyoncé começa a

cantar. É Sam de novo.

— Quando exatamente Sir Nicholas

Murray mandou uma mensagem de texto

para Violet? — pergunta ele

abruptamente.

— Hum... — Eu olho para o telefone.

— Umas quatro horas atrás. — As

primeiras palavras da mensagem

aparecem na tela, então não há nenhum

grande mal em clicar nela e ler o resto,

não é? Não que seja muito interessante.

Violet, por favor, peça a Sam para me ligar. O

telefone dele está desligado. Abçs, Nicholas.

— Merda. Merda. — Sam fica em

silêncio por um momento. — Tudo bem,

se ele mandar outro SMS, me avisa logo

em seguida, certo? Dá uma ligada.

Abro minha boca automaticamente para

dizer: “E seu pai? Por que você nunca liga

p r a ele?” Mas a fecho de novo. Não,

Poppy. Péssima ideia.

— Ah, deixaram um recado de voz

mais cedo — digo, me lembrando de

repente. — Sobre lipoaspiração ou

alguma coisa assim, eu acho. Não era pra

você?

— Lipoaspiração? — repete ele,

incrédulo. — Não que eu saiba.

Ele não precisa parecer tão

debochado. Eu só estava perguntando.

Devia ser para Violet. Não que ela deva

precisar de lipoaspiração se foi ser

modelo.

— Então... combinado? Temos um

acordo?

Ele fica em silêncio por alguns

segundos, e eu o imagino olhando com

raiva para o celular. Não tenho

exatamente a sensação de que ele está

gostando desse acordo. Mas que escolha

ele tem?

— Vou pedir que o endereço de e-mail

da assistente seja transferido para a minha

caixa de entrada — diz ele com irritação,

quase que para si mesmo. — Vou falar

com o pessoal técnico amanhã. Mas as

mensagens de texto vão continuar

chegando aí. Se eu perder alguma...

— Não vai! Olha, eu sei que não é o

ideal — digo, tentando acalmá-lo. — E

sinto muito. Mas estou realmente

desesperada. Todos os funcionários do

hotel estão com este número... todas as

faxineiras... é a minha única esperança. Só

por alguns dias. E prometo que vou

encaminhar todas as mensagens que

chegarem. Pela honra de uma Brownie.

— O quê de uma Brownie? — Ele

parece perplexo.

— Honra! Os Guias Brownie? Das

escoteiras? Você levanta uma das mãos e

faz o sinal e um juramento... Espera, vou

te mostrar. — Eu desligo o telefone.

Há um espelho sujo à minha frente no

ônibus. Faço uma pose em frente a ele,

segurando o celular numa das mãos, e

reproduzo o sinal Brownie na outra com

meu melhor sorriso de “sou uma pessoa

sã”. Tiro uma foto e mando como

mensagem para o Celular de Sam.

Cinco segundos depois chega uma

mensagem de texto.

Eu poderia mandar isso pra polícia te prender.

Sinto uma onda de alívio. Poderia. O

que significa que ele não vai fazer isso.

Eu respondo:

Agradeço muito, muito mesmo. Tks.

Mas nenhuma resposta chega.

Notas

7. O rei leão. Natasha conseguiu os ingressos de

graça. Achei que ia ser uma bobeirinha para

crianças, mas foi sensacional.

8. Eu acho que dá.

9. Nunca tive muita certeza do que isso quer

dizer.

10. Então talvez não seja pervertido.

11. OK, não como a Beyoncé. Como eu imitando

a Beyoncé.

12. Não livros com enredo, a propósito. Livros

com notas de rodapé. Livros sobre assuntos,

como história e antropologia e relativismo

cultural no Turcomenistão.

13. Tenho curiosidade em saber se todos tomam

óleo de peixe. Preciso me lembrar de perguntar.

14. Não me pergunte. Prestei muita atenção e

mesmo assim não consegui entender como eles

podiam discordar. Acho que o apresentador

também não conseguiu acompanhar.

15. Magnus me disse depois que ele estava

brincando. Mas não pareceu ser uma brincadeira.

16. Nunca li nada de Proust. Não sei por que

toquei no nome dele.

17. Eu sei. Já falei isso com ele, um milhão de

vezes.

18. Não a ponto de fazer rabo de cavalo, o que

seria nojento. Só um pouco comprido.

19. Acho que Annalise nunca me perdoou. Na

cabeça dela, se não tivesse trocado os horários

dos clientes, ela estaria se casando com ele

agora.

20. Está vendo? Só se fala em notas de rodapé.

21. Supondo que ele mora num pequeno chalé.

Ele dá a impressão de que mora. E sozinho, talvez

com um cachorro fiel como companhia.

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