Na manhã seguinte, acordo de repente e
vejo o celular piscando com uma
mensagem de texto do hotel Berrow e me
sinto tão aliviada que quase sinto vontade
de chorar. Encontraram! Encontraram!
Meus dedos se atrapalham ao destravar
o celular; minha mente está a mil. Uma
faxineira do turno da madrugada
encontrou o anel entalado num aspirador
de pó... achou no banheiro... viu um brilho
no tapete... agora está guardado num cofre
do hotel...
Prezado Hóspede, oferta de metade do preço
nos feriados de verão. Visite
www.berrowhotellondon.co.uk para mais
detalhes. Atenciosamente, a equipe do
Berrow
Eu afundo na cama tomada pela
decepção. Sem mencionar a raiva de
quem me botou na lista da mala direta.
Como puderam fazer isso? Estão tentando
brincar com as minhas neuroses?
Ao mesmo tempo, uma compreensão
desagradável está se revirando em meu
estômago. Oito horas se passaram desde
que perdi o anel. Quanto mais tempo ele
passar perdido...
E se...
Nem consigo concluir meus
pensamentos. Levanto da cama de repente
e ando até a cozinha. Vou preparar uma
xícara de chá e mandar mais algumas
mensagens para Sam Roxton. Isso vai me
distrair um pouco.
O telefone começou a vibrar de novo
com mensagens de texto e e-mails, então
coloco a chaleira para esquentar, me sento
perto da janela e começo a verificá-los,
tentando desesperadamente não me encher
de esperanças. É claro que todas as
mensagens são de algumas amigas
perguntando se eu já encontrei o anel e
dando sugestões do tipo: Será que
verifiquei os bolsinhos dentro da minha
bolsa?
Não há nenhuma mensagem de Magnus,
embora eu tenha mandado algumas para
ele ontem à noite, perguntando o que mais
os pais dele tinham dito sobre mim,
quando ele planejava me contar, como eu
ia encará-los agora e se ele estava me
ignorando de propósito.22
Por fim, me dedico às mensagens de
Sam. Ele obviamente ainda não resolveu a
questão da transferência dos e-mails,
porque tem uns cinquenta que chegaram
durante a noite e esta manhã. Caramba, ele
tinha razão. A assistente tomava mesmo
conta da vida dele toda.
Há pessoas e assuntos de todos os
tipos aqui. O médico dele, colegas,
pedidos de caridade, convites... É como
uma linha direta para o universo de Sam.
Consigo descobrir onde ele compra
camisas (Turnbull & Asser). Consigo
descobrir em que faculdade ele estudou
(Durham). Consigo ver o nome do
encanador que trabalha para ele (Dean).
Conforme vou descendo os e-mails,
começo a me sentir desconfortável. Nunca
tive tanto acesso ao celular de outra
pessoa. Nem ao dos meus amigos. Nem
mesmo ao de Magnus. Tem certas coisas
que não se compartilha. Magnus já tinha
visto cada centímetro do meu corpo,
inclusive as partes das quais não me
orgulho, mas eu nunca, em hipótese
alguma o deixaria chegar perto do meu
celular.
As mensagens de Sam estão misturadas
aleatoriamente com as minhas, e isso é
bem estranho. Passo por duas mensagens
minhas, umas seis de Sam e outra minha.
Todas lado a lado; todas coladas entre si.
Nunca compartilhei uma caixa de entrada
com ninguém na vida. Eu não esperava
que a sensação fosse tão... íntima. É como
se de repente compartilhássemos a gaveta
de roupas íntimas ou algo parecido.
Seja como for, não é nada demais. Não
é por muito tempo.
Faço meu chá e encho uma tigela com
cereais. Enquanto mastigo, vou
selecionando as mensagens lentamente,
descobrindo quais são para Sam e
encaminhando as dele.
Não vou espioná-lo nem nada. Óbvio
que não. Mas tenho que clicar em cada
mensagem para encaminhá-la, e às vezes
meus dedos automaticamente apertam o
botão de abrir a mensagem sem querer e
dou uma olhada no texto. Só às vezes.
Está claro que não é só o pai dele que
está tendo dificuldade para entrar em
contato. Ele deve ser péssimo mesmo em
responder e-mails e mensagens de texto,
pois há tantos pedidos suplicantes para
Violet: “Esse é um bom meio de falar com
Sam?” “Oi! Me desculpe o incômodo,
mas deixei várias mensagens para Sam...”
“Oi, Violet. Será que você poderia dar um
toque em Sam sobre um e-mail que
mandei semana passada? Vou repetir os
pontos principais aqui...”
Não é que eu esteja lendo todos os emails
inteiros nem nada. Nem lendo os emails
anteriores. Nem criticando as
respostas dele e reescrevendo-as na
minha cabeça. Afinal, não é da minha
conta o que ele escreve ou não. Ele pode
fazer o que quiser. Moramos num país
livre. Minha opinião não vale de nada...
Meu Deus, as respostas dele são curtas
e grossas! Está me irritando! Será que
tudo precisa ser tão curto? Será que ele
precisa ser tão grosso e antipático?
Enquanto leio mais uma resposta curta,
não consigo deixar de exclamar em voz
alta:
— Você é alérgico a digitar ou algo do
tipo?
É ridículo. Parece que ele está
determinado a usar o menor número de
palavras possível.
Sim, tudo bem. Sam
Pronto. Sam
OK. Sam
Será que ele morreria se acrescentasse
“Abçs”? Ou uma carinha feliz? Ou se
dissesse obrigado?
E já que estou falando nisso, por que
ele não pode simplesmente responder? A
pobre Rachel Elwood está tentando
organizar uma competição de corrida para
arrecadar fundos para caridade e
perguntou duas vezes se ele podia
organizar uma equipe. Por que ele não ia
querer fazer isso? É divertido, saudável,
junta dinheiro para caridade, não é para
amar?
Ele também não respondeu sobre a
hospedagem para a conferência da
empresa em Hampshire na semana que
vem. Vai ser no hotel Chiddingford, que
parece excelente, e ele tem uma suíte
reservada, mas precisa especificar para
uma pessoa chamada Lindy se ainda está
planejando chegar tarde. Mas ele não
respondeu.
O pior de tudo é que a recepcionista do
dentista dele mandou e-mail para marcar
um check-up quatro vezes. Quatro vezes.
Não consigo evitar dar uma olhada na
correspondência anterior, e Violet
obviamente tinha desistido de tentar. Cada
vez que ela marcava a consulta, ele
mandava um e-mail dizendo: “Cancele.
S”. E uma vez até escreveu: “Você só
pode estar brincando.”
Será que ele quer que os dentes dele
apodreçam?
Quando estou saindo para o trabalho às
8h40, uma nova leva de e-mails chega.
Obviamente essas pessoas começam a
trabalhar logo de manhãzinha. O primeiro
é de Jon Mailer, com o assunto “Qual é a
história?”, o que parece bastante
intrigante. Então, enquanto ando pela rua,
eu o abro.
Sam.
Encontrei Ed no Groucho Club ontem à noite,
e ele estava péssimo. Só digo isso: não deixa
ele ficar no mesmo ambiente que Sir
Nicholas tão cedo, ou vai deixar?
Atenciosamente
Jon
Ah, agora também quero saber qual é a
história. Quem é Ed e por que ele estava
péssimo no Groucho Club?23
O segundo e-mail é de uma pessoa
chamada Willow, e quando clico nele,
meus olhos são agredidos por caixa alta
para todo lado.
Violet.
Vamos agir como adultas em relação a isso.
Você OUVIU minha briga com Sam. Não faz
sentido esconder nada de você.
Então, como Sam SE RECUSA a responder o
e-mail que enviei meia hora atrás, será que
você poderia fazer a gentileza de imprimir o
anexo e COLOCAR SOBRE A MESA DELE
PARA QUE ELE LEIA?
Muito obrigada.
Willow
Fico olhando para o celular em estado
de choque, quase com vontade de rir.
Willow deve ser a noiva dele. Rá.
O endereço de e-mail dela é
willowharte@consultoriawhiteglobe.com.
Então é óbvio que ela trabalha na
Consultoria White Globe, mas ainda
assim manda e-mails para ele? Não é
estranho? A não ser que talvez trabalhem
em andares diferentes. Faz sentido. Uma
vez mandei um e-mail para Magnus do
andar de cima para pedir que me fizesse
uma xícara de chá.
Fico curiosa para saber o que é o
anexo.
Meus dedos hesitam quando paro em
frente a uma faixa de pedestres. Seria
errado ler. Muito, muito errado. Quero
dizer, não é um e-mail aberto enviado
para várias pessoas em cópia. É um
documento particular entre duas pessoas
que têm um relacionamento. Eu não
deveria olhar. Já foi ruim o bastante eu ter
lido o e-mail do pai dele.
Mas, por outro lado... ela quer que seja
impresso, não quer? E colocado sobre a
mesa de Sam, onde qualquer pessoa
poderia ler se passasse por lá. E não sou
nada indiscreta. Não vou comentar isso
com ninguém; ninguém nem ao menos vai
saber que eu li...
Meus dedos parecem ter vida própria.
Já estou clicando no anexo. Leva um
tempo até eu colocar o documento em
foco, tem tanta letra em caixa alta.
Sam
Você ainda não me respondeu.
É o que pretende fazer? Você acha que isso
NÃO É IMPORTANTE?????
Meu Deus.
É apenas a coisa mais importante DAS
NOSSAS VIDAS. E como pode passar o dia
tão calmo... Não sei. Me dá vontade de
chorar.
Precisamos conversar, muito, muito mesmo.
E sei que em parte é minha culpa, mas até que
a gente comece a desfazer os nós JUNTOS,
como vamos saber quem está puxando qual
corda? Como?
O problema, Sam, é que às vezes nem sei se
você está segurando uma corda. A coisa está
ruim assim. NÃO SEI SE VOCÊ ESTÁ
SEGURANDO ALGUMA CORDA.
Consigo ver você balançando a cabeça, Sr.
Negação. Mas está. Está RUIM ASSIM,
OK???
Se você fosse um ser humano com um pingo
de emoção, estaria chorando a essa altura. Eu
estou. E esse é outro problema. Tenho uma
reunião às 10h com Carter, mas você
ESTRAGOU A PORRA TODA porque deixei
a PORRA DO RÍMEL em casa.
Então, sinta-se orgulhoso.
Willow
Meus olhos estão tão arregalados que
parecem dois pires. Nunca vi nada assim
na vida.
Releio o anexo, e de repente me vejo
dando risadinhas. Sei que eu não deveria.
Não é engraçado. É evidente que ela está
muito chateada. E sei que eu já falei umas
coisas terríveis para Magnus, quando
fiquei irritada e tomada pelos hormônios.
Mas eu jamais, jamais colocaria num email
e mandaria a assistente dele
imprimir...
Minha cabeça se ergue com uma
percepção repentina. Merda! Não há mais
Violet. Ninguém vai imprimir e colocar a
mensagem na mesa de Sam. Ele não vai
saber, não vai responder e Willow vai
ficar ainda mais furiosa. O pior de tudo é
que essa ideia me dá ainda mais vontade
de rir.
Eu me pergunto se esse é um dia ruim
ou se ela é sempre intensa assim. Não
consigo resistir a digitar “Willow” no
sistema de busca, e toda uma série de emails
aparece. Tem um de ontem, com o
assunto: “Você está tentando me foder ou
foder COMIGO, Sam? Ou SERÁ QUE NÃO
CONSEGUE DECIDIR?” E tenho outra crise
de risos. Nossa. Eles devem ter um desses
relacionamentos de altos e baixos. Talvez
joguem coisas um no outro, gritem e
berrem, depois façam sexo louco e
apaixonado na cozinha...
Beyoncé começa a gritar de repente no
celular e quase o deixo cair quando vejo
“Celular do Sam” escrito na tela. Tenho
um pensamento repentino e louco de que
ele deve ser médium e sabe que ando
espionando a vida amorosa dele.
Chega de xeretar, prometo
apressadamente para mim mesma. Nada
de buscar sobre Willow de novo. Conto
até três... e aperto o botão para atender.
— Ah, oi oi! — Tento parecer
relaxada e sem culpa, como se estivesse
pensando em outra coisa completamente
diferente e não em Sam fodendo a noiva
em cima de uma pilha de louça quebrada.
— Eu recebi um e-mail de Ned
Murdoch hoje de manhã? — Ele começa
sem nem falar um “oi”.
— Não. Encaminhei todos os e-mails.
E bom dia para você também —
acrescento com alegria. — Estou muito
bem, e você?
— Achei que você poderia ter deixado
passar um. — Ele ignora totalmente meu
comentário sarcástico. — É extremamente
importante.
— Bem, eu sou extremamente
cuidadosa — respondo, assertiva. —
Pode acreditar, tudo que chega nesse
aparelho está indo para você. E não
chegou nada de Ned Murdoch. Aliás, uma
pessoa chamada Willow acabou de
mandar um e-mail — acrescento
casualmente. — Vou encaminhar. Tem um
anexo que pareceu importante. Mas
obviamente, não olhei. Nem li, nem nada.
— Humm. — Ele dá uma espécie de
resmungo evasivo. — E aí, encontrou seu
anel?
— Ainda não — admito com
relutância. — Mas tenho certeza de que
vai aparecer.
— Você deveria informar à
seguradora, sabia? Às vezes tem um limite
de tempo para o comunicado. Uma colega
minha cometeu esse erro outro dia.
Seguradora? Limite de tempo?
De repente, me sinto tomada de culpa.
Não pensei nisso em momento algum. Não
verifiquei meu seguro nem o dos Tavish
nem nada. Em vez disso, estou em frente à
faixa de pedestres, deixando de andar e
lendo os e-mails de outras pessoas para
depois rir deles. Prioridades, Poppy.
— Certo — consigo dizer finalmente.
— É, eu já sabia. Estou cuidando disso.
Eu desligo e fico parada por um
momento, com o trânsito a toda à minha
frente. Parece que ele estourou minha
bolha. Tenho que contar a verdade. O anel
é dos Tavish. Eles precisam saber que foi
perdido. Tenho que contar a eles.
Oi! Sou eu, a garota que vocês não
querem que se case com seu filho.
Adivinhem, perdi o valioso anel da sua
família!
Vou me dar mais 12 horas, decido de
repente, e aperto o botão para acionar o
sinal de pedestres de novo. Só para ver o
que acontece. Só isso.
Depois conto para eles.
Sempre pensei que seria dentista. Várias
pessoas na minha família são, e sempre
me pareceu uma carreira boa. Mas aí,
quando eu tinha 15 anos, minha escola me
mandou para uma experiência de trabalho
na unidade de fisioterapia no hospital
local. Todos os fisioterapeutas eram tão
empolgados com o que faziam que focar
só em dentes passou a parecer pouco para
mim. E nunca me arrependi da minha
decisão. Tem tudo a ver comigo, ser
fisioterapeuta.
O First Fit Physio Studio fica a uma
caminhada de exatos 18 minutos do meu
apartamento em Balham, depois de uma
Costa e ao lado de uma Greggs, a padaria.
Não é o melhor emprego do mundo; eu
provavelmente ganharia mais se
trabalhasse em alguma academia chique
ou num grande hospital. Mas estou aqui
desde que me formei e não consigo me
imaginar trabalhando em qualquer outro
lugar. Além do mais, trabalho com
amigos. Você não abriria mão disso à toa,
abriria?
Chego às 9 horas, esperando encontrar
a reunião habitual da equipe. Temos
reunião toda quinta de manhã, na qual
discutimos sobre pacientes e metas, novas
terapias, a mais recente pesquisa, coisas
do tipo.24 Na verdade, tem um paciente em
particular sobre quem quero falar: a Sra.
Randall, minha doce paciente de 65 anos
com problema nos ligamentos. Ela está
praticamente recuperada, mas semana
passada veio duas vezes e esta semana,
marcou três horários. Já falei que ela só
precisa se exercitar em casa com os
elásticos Dyna Band, mas ela insiste que
precisa da minha ajuda. Acho que ela se
tornou completamente dependente de nós,
o que pode ser bom para o nosso caixa,
mas não é bom para ela.
Portanto, estou ansiosa pela reunião.
Mas, para minha surpresa, a sala de
reuniões está arrumada de modo diferente
do costume. A mesa foi empurrada para
um dos cantos com duas cadeiras atrás, e
há uma cadeira solitária de frente a ela no
meio da sala. Parece a arrumação para
uma entrevista.
A porta da recepção emite o sinal que
avisa que alguém entrou, e quando me
viro vejo Annalise entrando com uma
bandeja do Costa Coffee. Ela está com
uma trança elaborada no cabelo longo e
louro, idêntica a uma deusa grega.
— Oi, Annalise. O que está
acontecendo?
— É melhor você falar com Ruby. —
Ela me lança um olhar de lado, sem sorrir.
— Quê?
— Acho que eu não devo te dizer. —
Ela toma um gole de cappuccino, olhando
para mim com ar misterioso por cima do
copo.
O que está acontecendo agora?
Annalise é uma pessoa bastante irritadiça;
na verdade, ela é bastante infantil. Do
nada ela fica toda quietinha e rabugenta, e
aí você descobre que no dia anterior você
pediu com certa impaciência o histórico
de um paciente e isso acabou magoando
os sentimentos dela.
Ruby é o oposto. Ela tem a pele lisa,
da cor de café com leite, um busto enorme
e maternal e é tão cheia de bom-senso que
praticamente escorre pelas orelhas. No
minuto em que ela chega ao seu lado, você
se sente mais sã, mais calma, mais alegre
e mais forte. Não é surpresa que a clínica
de fisioterapia seja um sucesso. Annalise
e eu somos boas no que fazemos, mas
Ruby é a grande estrela. Todo mundo a
adora. Os homens, as mulheres, as vovós,
as crianças. Foi ela também quem juntou
dinheiro e investiu no negócio,25 então,
oficialmente, ela é a minha chefe.
— Bom dia, querida. — Ruby sai
rapidamente da sala de terapia, sorrindo
largamente, como o habitual. Seu cabelo
está penteado para trás e preso num
coque, com detalhes retorcidos de cada
lado. Tanto Annalise quanto Ruby
capricharam nos penteados. É quase como
uma competição entre as duas. — Olha só,
é um saco, mas preciso fazer uma
audiência disciplinar com você.
— O quê? — Olho para ela
boquiaberta.
— Não é culpa minha! — Ela ergue as
mãos. — Quero credenciamento de um
novo grupo, o PFFA. Andei lendo o
material deles, e eles dizem que se alguém
da equipe dá em cima de pacientes, essa
pessoa precisa ser punida. Devíamos ter
feito isso mesmo, você sabe, mas agora
tenho que ter os documentos prontos para
o inspetor. Vamos acabar rapidinho.
— Eu não dei em cima dele — falei,
na defensiva. — Ele deu em cima de mim!
— Acho que o comitê vai decidir isso,
não é? — diz Annalise, com hostilidade.
Ela está tão séria que fico até um pouco
preocupada. — Eu falei que você tinha
sido antiética — acrescenta ela. — Você
devia ser processada.
— Processada? — Eu apelo para
Ruby.
Não consigo acreditar que isso esteja
acontecendo. Quando Magnus me pediu
em casamento, Ruby disse que era uma
história tão romântica que ela tinha
vontade de chorar e que, tudo bem,
estritamente falando, era contra as regras,
mas na opinião dela o amor superava
tudo, e me perguntou se “por favor , ela
poderia ser dama de honra?”.
— Annalise, você não quer dizer
“processada”. — Ruby revira os olhos.
— Venha. Vamos montar o comitê.
— Quem compõe o comitê?
— Nós — diz Ruby com alegria. — Eu
e Annalise. Sei que devíamos ter alguém
de fora, mas eu não sabia quem chamar.
Vou dizer para o inspetor que convoquei
uma pessoa, mas ela ficou doente. — Ela
olha para o relógio. — Certo, temos vinte
minutos. Bom dia, Angela! — ela
acrescenta com alegria quando nossa
recepcionista abre a porta da frente. —
Não passe nenhuma ligação, está bem?
Angela apenas concorda, funga e solta
a bolsa no chão. O namorado dela toca
numa banda, então ela nunca é muito
comunicativa de manhã.
— Ah, Poppy — diz Ruby por cima do
ombro ao seguir na frente em direção à
sala de reuniões. — Eu devia ter dado
duas semanas de aviso para você se
preparar. Mas você não precisa disso
tudo de tempo, né? Podemos dizer que
você teve? Porque só falta um pouco mais
de uma semana para o casamento, e adiar
significaria tirar você da sua lua de mel
ou deixar para quando você voltasse, e eu
quero mesmo resolver a papelada...
Ela está me guiando até a cadeira
solitária, abandonada no meio da sala,
enquanto ela e Annalise tomam seus
lugares atrás da mesa. A qualquer minuto,
espero uma luz intensa ser apontada para
o meu rosto. Isso é horrível. Tudo de
repente mudou. São elas contra mim.
— Você vai me despedir? — Eu me
sinto ridiculamente em pânico.
— Não! É claro que não! — Ruby está
desenroscando a tampa da caneta. — Não
seja boba!
— Poderíamos — diz Annalise, me
lançando um olhar ameaçador.
Obviamente, ela está adorando o papel
de Braço Direito da chefona. Eu sei por
que tudo isso. É porque eu fiquei com
Magnus e ela não.
O problema é o seguinte: Annalise é a
mais bonita. Até mesmo eu quero ficar
olhando para ela o dia todo, e eu sou
mulher. Se você dissesse para qualquer
pessoa no ano passado “Qual dessas três
vai fisgar um cara e ficar noiva até a
primavera?”, ela teria dito imediatamente:
“Annalise.”
Por isso consigo entender seu ponto de
vista. Ela deve se olhar no espelho e se
ver (deusa grega), depois me ver (pernas
finas, cabelo escuro, melhor
característica: cílios longos) e pensar...
“PQP. Sério?”
Além do mais, como eu já tinha dito,
Magnus estava marcado com ela a
princípio. E, no último minuto, trocamos
de pacientes. O que não é culpa minha.
— Pois bem. — Ruby tira os olhos do
bloco pautado. — Vamos pontuar os fatos,
Srta. Wyatt. No dia 15 de dezembro do
ano passado, você atendeu um homem
chamado Sr. Magnus Tavish aqui na
clínica.
— Sim.
— Qual era o tipo de lesão?
— Torção de pulso durante prática de
esqui.
— E ao longo dessa consulta ele
demonstrou... algum interesse por você
que fosse inadequado? Ou você por ele?
Puxo do fundo da minha memória
aquele primeiro instante em que Magnus
entrou na minha sala. Ele usava um casaco
comprido cinza de tweed, o cabelo
castanho-avermelhado brilhava por causa
da chuva e o rosto estava vermelho por ter
andado rápido. Ele estava dez minutos
atrasado e entrou correndo, segurou
minhas mãos e disse “Mil perdões pelo
atraso” com uma voz adorável e bemeducada.
— Eu... hum... não — falei, na
defensiva. — Foi só uma consulta padrão.
No momento em que digo isso, sei que
não é verdade. Em consultas rotineiras,
seu coração não dispara quando você
segura o braço do paciente. Os cabelos da
sua nuca não ficam eriçados. Você não
segura a mão dele só um pouquinho mais
do que precisa.
Não que eu possa dizer qualquer uma
dessas coisas. Eu realmente seria
demitida.
— Eu tratei o paciente durante o
período de uma série de consultas. —
Tento parecer calma e profissional. —
Quando percebemos o que sentíamos um
pelo outro, o tratamento dele já tinha
terminado. Portanto, foi totalmente ético.
— Ele me falou que foi amor à
primeira vista! — diz Annalise. — Como
você explica isso? Ele me disse que
vocês ficaram instantaneamente atraídos
um pelo outro e que ele queria atacar você
ali mesmo, no sofá. Contou que nunca viu
nada tão sexy quanto você de uniforme.
Vou dar um tiro em Magnus. Para que
ele foi dizer isso?
— Protesto! — Eu olho para ela com
raiva. — A evidência foi obtida sob
influência de álcool e de uma forma não
profissional. Portanto, não pode ser
utilizada no tribunal.
— Pode sim! E você está sob
juramento! — Ela aponta o dedo para
mim.
— Protesto aceito — interrompe Ruby,
levantando os olhos ao terminar de
escrever com um olhar distante e
melancólico. — Foi mesmo amor à
primeira vista? — Ela se inclina para a
frente e seus grandes seios uniformizados
se espalham para todos os lados. — Você
sabia?
Fecho os olhos e tento visualizar
aquele dia. Não tenho certeza sobre o que
eu sabia além de que eu também queria
atacá-lo no sofá.
— Sabia — digo, por fim. — Acho
que sim.
— É tão romântico — suspira Ruby.
— E errado! — grita Annalise com
severidade. — Assim que ele demonstrou
interesse, você deveria ter dito: “Senhor,
este comportamento é inadequado.
Gostaria de encerrar esta consulta e que
você fosse atendido por outra
fisioterapeuta.
— Ah, outra fisioterapeuta! — Não
consigo segurar uma risada. — Como
você, por acaso?
— Talvez! Por que não?
— E se ele tivesse demonstrado
interesse por você?
Ela ergue o queixo com orgulho.
— Eu teria lidado com a situação sem
comprometer meus princípios éticos.
— Eu fui ética! — digo, revoltada. —
Fui completamente ética!
— Ah, é? — Ela aperta os olhos, como
um advogado de acusação. — O que
levou você a sugerir trocar de consultas
comigo antes da primeira consulta dele,
Srta. Wyatt? Será que já não tinha jogado
o nome dele no Google e decidido que
queria ele pra você?
Já não resolvemos isso?
— Annalise, você quis trocar de
consultas! Nunca sugeri nada! Eu nem
fazia ideia de quem ele era! Então se você
acha que saiu perdendo, azar o seu. Da
próxima vez, não troque!
Por um momento, Annalise não diz
nada. O rosto dela vai ficando cada vez
mais e mais rosa.
— Eu sei — diz ela, e bate com o
punho na testa. — Eu sei! Fui tão burra.
Por que fui trocar?
— E daí? — interrompe Ruby com
firmeza. — Annalise, supera. Magnus
obviamente não era para ser seu, era para
ser de Poppy. Que importância tem?
Annalise fica em silêncio. Percebo que
não está convencida.
— Não é justo — murmura ela,
finalmente. — Você sabe quantos
banqueiros massageei na Maratona de
Londres? Você sabe o quanto me
esforcei?
Annalise começou a se interessar pela
Maratona de Londres havia alguns anos,
quando estava assistindo na TV e
percebeu que tinha um bando de caras de
40 anos sarados e cheios de energia que
provavelmente estavam solteiros porque a
única coisa que faziam era correr, e é
verdade que 40 anos era meio velho, mas
pense no tipo de salário que eles devem
ganhar.
Assim, ela começou a se voluntariar
como fisioterapeuta de emergência todos
os anos depois disso. Ela vai pelo faro
direto para os homens atraentes e
massageia os músculos da panturrilha ou
algum outro enquanto os mira com os
enormes olhos azuis e diz que sempre
ajudou aquela mesma instituição de
caridade.26
Para ser justa, ela já conseguiu muitos
encontros assim (um cara até a levou a
Paris), mas nada mais duradouro ou sério,
que é o que ela quer. O que ela não
admite, óbvio, é o elevado grau de
exigência que tem. Ela finge que quer “um
cara legal e sincero com bons valores”,
mas vários assim já ficaram
desesperadamente apaixonados por ela. E
ela deu o fora neles, até naquele ator que
era bem bonito (a peça dele saiu de cartaz
e ele não tinha outra para fazer depois). O
que ela quer mesmo é um cara que parece
saído de um comercial da Gilette com um
salário enorme e/ou um título. De
preferência, os dois. Acho que é por isso
que ela está tão furiosa por ter perdido
Magnus, pois ele é “doutor”. Uma vez ela
me perguntou se ele se tornaria “pósdoutor”
um dia e eu disse que
provavelmente sim, e ela ficou meio
verde.
Ruby escreve alguma coisa e tampa a
caneta.
— Bem, acho que cobrimos os fatos.
Muito bem, pessoal.
— Você não vai dar uma advertência a
ela nem nada? — Annalise ainda está
fazendo beicinho.
— Ah, é justo. — diz Ruby, e limpa a
garganta. — Poppy, não faça isso de
novo.
— Tudo bem. — Eu dou de ombros.
— Vou colocar essa declaração por
escrito e mostrar para o inspetor. Isso
deve calar a boca dele. Aliás, eu disse
que encontrei o sutiã sem alças perfeito
para colocar com meu vestido de dama de
honra? — Ruby dá um sorrisão para mim,
voltando a ser a pessoa alegre de sempre.
— É de cetim verde-azulado. Um luxo.
— Parece incrível! — Eu me levanto e
estico a mão em direção à bandeja do
Costa Coffee. — Um desses é pra mim?
— Eu trouxe para você um café com
leite — diz Annalise de má vontade. —
Com noz moscada.
Quando o pego, Ruby sufoca um
gritinho.
— Poppy! Você não achou o anel?
Levanto a cabeça e vejo Annalise e
Ruby olhando para a minha mão esquerda.
— Não — admito com relutância. —
Quero dizer, tenho certeza de que vai
aparecer em algum lugar...
— Merda. — Annalise está com a mão
por cima da boca.
— Achei que tivesse encontrado. —
Ruby está com a testa franzida. — Eu
tinha certeza de que alguém me disse que
você tinha encontrado.
— Não. Ainda não.
E u realmente não estou gostando da
reação delas. Nenhuma das duas está
dizendo “não se preocupe” nem “essas
coisas acontecem”. As duas parecem
horrorizadas, até mesmo Ruby.
— O que você vai fazer então? — As
sobrancelhas de Ruby estão quase unidas.
— O que Magnus disse? — pergunta
Annalise.
— Eu... — Tomo um gole do café para
ganhar tempo. — Ainda não contei pra
ele.
— Ai, meu Deus — diz Ruby baixinho.
— Quanto ele vale? — Posso contar
com Annalise fazer todas as perguntas
sobre as quais não quero pensar.
— Muito, eu acho. Mas tem sempre o
seguro... — falo de forma nada
convincente.
— Quando você pretende contar para o
Magnus? — Ruby está com uma expressão
desaprovadora. Odeio essa expressão.
Ela faz com que eu me sinta pequena e
humilhada. Como naquela vez horrível em
que ela me pegou fazendo um ultrassom e
enviando mensagem de texto ao mesmo
tempo.27 Ruby é daquelas pessoas que
você instintivamente quer impressionar.
— Hoje à noite. Nenhuma de vocês viu
o anel por aí, né? — Não consigo evitar a
pergunta, embora seja uma pergunta
ridícula, como se de repente elas fossem
dizer: “Ah, vi sim, está na minha bolsa!”
As duas dão de ombros, indicando um
não silencioso. Até Annalise parece estar
com pena de mim.
Ai, Deus. Minha situação está bem
ruim.
Às 6 horas da tarde, a situação está ainda
pior. Annalise jogou “anéis de esmeralda”
no Google.
Eu pedi para ela fazer essa pesquisa?
Não. Não pedi. Magnus nunca me contou
quanto vale o anel. Eu perguntei
brincando quando ele o colocou no meu
dedo pela primeira vez, e ele brincou em
resposta que era valiosíssimo, como eu.
Foi tudo tão lindo e romântico. Estávamos
jantando no Bluebird e eu não fazia ideia
de que ele ia me pedir em casamento.
Nem sonhava.28
Mas a questão é que eu nunca soube o
preço do anel e nunca quis saber. Fico
treinando em pensamento coisas que
posso dizer para Magnus, como “Bem, eu
não sabia que era tão valioso! Você devia
ter me contado!”.
Não que eu tivesse coragem de dizer
isso. O quão burra você precisa ser para
não perceber que uma esmeralda saída de
um cofre de banco vale uma bela quantia?
Ainda assim, é um certo consolo não ter
um valor preciso na cabeça.
Mas agora Annalise está segurando
uma folha de papel que ela imprimiu da
internet.29
— Esmeralda de alta qualidade, art
déco, com diamantes baguete. — Ela lê.
— Estimativa: 25 mil libras.
O quê? Minhas entranhas viram geleia.
Isso não pode estar certo.
— Ele não me daria uma coisa tão
cara. — Minha voz está meio trêmula. —
Professores são pobres.
— Ele não é pobre! É só ver a casa
dos pais dele! O pai dele é uma
celebridade! Olha aqui, esse custa 30 mil.
— Ela mostra outra folha de papel. — É
exatamente igual ao seu. Você não acha,
Ruby?
Não consigo olhar.
— Eu jamais tiraria esse anel do dedo
— acrescenta Annalise, arqueando as
sobrancelhas, e quase sinto vontade de
bater nela.
— Foi você quem quis experimentar!
— digo furiosamente. — Se não tivesse
sido por você, eu ainda teria o anel!
— Não fui eu! — responde ela com
indignação. — Eu só experimentei porque
todo mundo estava experimentando. Já
estava circulando pela mesa.
— Então de quem foi a ideia?
Eu andei fundindo o cérebro quanto a
isso outra vez, mas se minha memória
estava devagar ontem, hoje está ainda
pior.
Nunca vou acreditar num mistério de
Poirot novamente. Nunca. Todas aquelas
testemunhas dizendo: “Sim, eu me lembro
que eram exatamente 15h06 porque olhei
para o relógio ao pegar a colher do
açúcar, e Lady Favisham estava
claramente sentada no lado direito da
lareira.”
Baboseira. Eles não têm ideia de onde
Lady Favisham estava, só não querem
admitir na frente de Poirot. Fico
impressionada que ele consiga chegar a
algum resultado.
— Tenho que ir. — Eu me viro antes
de Annalise poder me provocar com
outros anéis caros.
— Contar para Magnus?
— Primeiro tenho uma reunião sobre o
casamento com Lucinda. Depois com
Magnus e a família dele.
— Depois diz para a gente o que
aconteceu. Manda um SMS! — Annalise
franze a testa. — Aliás, isso me lembrou
de uma coisa, Poppy... por que você
mudou seu número?
— Ah, é. Bem, eu saí do hotel para
conseguir um sinal melhor e estava
segurando o celular com a mão esticada...
Eu paro de falar. Pensando bem, não
estou disposta a falar de toda a história do
roubo e do celular no lixo e de Sam
Roxton. É complicado demais e não tenho
energia para isso.
Em vez disso, dou de ombros.
— Foi que... você sabe. Perdi meu
celular. Comprei outro. Vejo vocês
amanhã.
— Boa sorte, senhorita. — Ruby me
puxa e me dá um rápido abraço.
— SMS! — ouço Annalise gritar atrás
de mim quando saio pela porta. —
Queremos atualizações a cada hora!
Ela teria sido ótima em execuções
públicas, a Annalise. Teria sido a que fica
na frente, lutando para ter uma boa visão
do machado, já esboçando os detalhes
sangrentos para colocar no quadro de
avisos da aldeia para o caso de alguém ter
perdido.
Ou, sei lá, fazer o que quer que fosse
que faziam antes do Facebook existir.
Não sei por que me dou o trabalho de
correr, porque Lucinda está atrasada,
como sempre.
Na verdade, não sei por que me dei o
trabalho de ter uma cerimonialista. Mas
só tenho esse pensamento em segredo,
porque Lucinda é uma velha amiga da
família Tavish e, toda vez que a
menciono, Magnus diz “Vocês duas estão
se dando bem?” num tom esperançoso,
como se fôssemos dois pandas em
extinção que têm que fazer um bebê.
Não é que eu não goste de Lucinda.
Mas ela me estressa. Ela me manda
relatórios por mensagem de texto o tempo
todo informando o que está fazendo e
onde está, e fica me dizendo que tremendo
esforço ela está fazendo por mim, como
na aquisição dos guardanapos, que acabou
sendo uma saga enorme que demorou uma
eternidade e exigiu três idas ao depósito
de tecidos em Walthamstow.
Além do mais, as prioridades dela
parecem um pouco distorcidas. Por
exemplo, ela contratou um “Especialista
em TI de Casamentos” por um preço
altíssimo, que criou coisas como um
sistema de alerta por mensagem de texto
que envia atualizações aos convidados30 e
uma página na internet em que os
convidados podem registrar quais roupas
vão vestir e evitar “coincidências
infelizes”.31 Mas ao mesmo tempo em que
fazia tudo isso, ela não fez contato com o
bufê que queríamos e nós quase o
perdemos.
Vamos nos encontrar no saguão do
Claridge’s. Lucinda adora saguões de
hotel, não me pergunte por quê. Fico
pacientemente sentada lá por vinte
minutos, bebendo um chá preto fraco,
desejando ter cancelado o encontro e me
sentindo cada vez mais enjoada ao pensar
em ver os pais de Magnus. Estou
imaginando se vou mesmo ter que ir ao
toalete para vomitar quando ela aparece
de repente, com cabelos negros ao vento,
perfume Calvin Klein e seis ilustrações
debaixo do braço. Os sapatos de camurça
de saltos baixos e bico fino cor-de-rosa
estalam no piso de mármore e o casaco
rosa de caxemira esvoaça atrás dela como
um par de asas.
Logo atrás dela vem Clemency, a
“assistente”. (Isso se uma garota de 18
anos que não recebe salário pode ser
chamada de assistente. Eu chamaria de
escrava.) Clemency é elegante, doce e
morre de medo de Lucinda. Ela respondeu
ao anúncio de Lucinda no The Lady, que
pedia uma estagiária, e vive me dizendo o
quanto é ótimo aprender o ofício em
primeira mão com uma profissional
experiente.32
— Andei conversando com o vigário.
Essa disposição não vai funcionar. A
porcaria do púlpito tem que ficar no lugar.
— Lucinda se senta esparramada com as
longas pernas dentro de uma calça Joseph,
e as pranchetas caem todas no chão. —
Não sei por que as pessoas não podem ser
ma i s prestativas. O que vamos fazer
agora? E nem tive resposta do bufê...
Mal consigo me concentrar no que ela
está dizendo. De repente me pego
querendo ter combinado de encontrar
Magnus primeiro, sozinha, para contar
sobre o anel. Assim, poderíamos encarar
o pai dele juntos. Será que é tarde
demais? Será que eu poderia mandar uma
mensagem de texto rápida no caminho?
— ... e ainda não consegui um
trombeteiro. — Lucinda expira com força
com duas unhas pintadas encostadas à
testa. — Tem tanta coisa por fazer. É uma
l oucur a. Loucura. Teria ajudado se
Clemency tivesse digitado a Ordem de
Serviço corretamente — acrescenta ela
com um pouco de grosseria.
A pobre Clemency fica vermelha como
uma beterraba e lanço um sorriso
simpático a ela. Não é culpa dela ser
disléxica e ter escrito “quântico” em vez
de “cântico” e a coisa toda ter que ser
refeita.
— Vai dar tudo certo! — digo de
maneira encorajadora. — Não se
preocupe!
— Tenho que dizer que depois que
isso acabar, vou precisar de uma semana
num spa. Você viu minhas mãos? — Ela
as empurra em minha direção. — Isso é
estresse!
Não tenho a menor ideia do que
Lucinda está falando, as mãos dela
parecem perfeitamente normais para mim.
Mas olho para elas obedientemente.
— Está vendo? Destruídas. Tudo por
seu casamento, Poppy! Clemency, peça
um gim com tônica para mim.
— Certo. Pode deixar. — Clemency dá
um salto e fica de pé com ansiedade.
Tento ignorar uma leve irritação.
Lucinda sempre solta coisas assim no
meio da conversa: “Tudo pelo seu
casamento.” “Só para fazer você feliz,
Poppy.” “A noiva sempre tem razão!”
Ela é bem grosseira às vezes, e acho
isso um tanto desconcertante. Não pedi
que ela fosse cerimonialista, pedi? E
estamos pagando muito dinheiro a ela, não
estamos? Mas não quero dizer nada
porque ela é velha amiga de Magnus e
tudo mais.
— Lucinda, eu estava pensando, já
escolhemos os carros? — pergunto com
hesitação.
Fica um silêncio sinistro. Percebo que
há uma onda de fúria crescendo em
Lucinda pelo jeito que o nariz dela
começa a tremer. Por fim, a onda surge, na
hora em que a pobre Clemency volta.
— Ah, maldição. Ah, porra...
Clemency! — Ela dirige a ira para a
garota trêmula. — Por que você não me
lembrou dos carros? Eles precisam de
carros! Precisamos reservar!
— Eu... — Clemency olha indefesa
para mim. — Hum... Eu não sabia...
— Sempre tem alguma coisa! —
Lucinda está quase falando sozinha. —
Sempre falta alguma coisa em que se
pensar. Não tem fim. Por mais que eu dê
tudo de mim, não acaba nunca...
— Olha, posso cuidar dos carros? —
digo apressadamente. — Tenho certeza de
que posso escolher.
— Você faria isso? — Lucinda parece
despertar. — Será que você pode fazer
isso? É que sou uma só, sabe, e passo a
semana toda trabalhando nos detalhes,
tudo pelo seu casamento. Poppy...
Ela parece tão estressada que me sinto
um pouco culpada.
— Claro! Sem problemas. É só eu
procurar nas Páginas Amarelas ou algo do
tipo.
— E como está indo com o seu cabelo,
Poppy? — Ela então se concentra na
minha cabeça, e eu silenciosamente
mando meu cabelo crescer rapidinho mais
um centímetro.
— Nada mal! Tenho certeza de que vai
dar para fazer o coque. Com certeza. —
Tento parecer mais otimista do que me
sinto.
Lucinda me falou umas cem vezes o
quanto eu fui limitada e tola de cortar meu
cabelo acima do ombro quando estava
prestes a ficar noiva.33 Também me falou
na loja de vestidos de noiva que, com a
minha pele pálida,34 um vestido branco
nunca ia ficar bom e que eu devia usar
verde-limão. No meu casamento.
Felizmente, a dona da loja de vestidos de
noiva se meteu e disse que Lucinda estava
falando besteira: meus cabelos e olhos
escuros ficariam lindos com o branco.
Preferi acreditar nela.
A bebida chega e Lucinda toma um
grande gole. Tomo outro gole de chá preto
morno. A pobre Clemency não está
bebendo nada, mas parece estar tentando
se fundir com a cadeira e não chamar
atenção nenhuma.
— e... você ia pesquisar sobre o
confete? — pergunto com cautela. — Mas
posso fazer isso também. — Recuo
rapidamente ao ver a expressão de
Lucinda. — Vou ligar para o vigário.
— Ótimo! — Lucinda expira
intensamente. — Eu adoraria que você
fizesse isso! Porque eu sou uma só e
consigo estar em apenas um lugar de cada
vez... — Ela para de falar abruptamente
quando seu olhar cai sobre minha mão. —
Onde está seu anel, Poppy? Ah, meu Deus,
você ainda não o encontrou?
Quando ela ergue o olhar, parece tão
estupefata que começo a me sentir enjoada
de novo.
— Ainda não. Mas vai aparecer logo.
Tenho certeza. A equipe do hotel está
procurando...
— E você não contou a Magnus?
— Vou contar! — Engulo em seco. —
Em breve.
— Mas não é uma joia importante da
família? — Os olhos cor de mel de
Lucinda estão arregalados. — Não vão
ficar furiosos?
Ela está tentando me fazer ter um
colapso nervoso?
Meu telefone vibra e eu pego o
aparelho, agradecida pela distração.
Magnus acabou de me mandar uma
mensagem de texto que frustra minha
esperança secreta de os pais dele
repentinamente desenvolverem uma
infecção estomacal e terem que cancelar.
Jantar às 8, família toda aqui, mal podem
esperar para te ver!
— É seu celular novo? — Lucinda
franze a testa de forma crítica ao vê-lo. —
Você recebeu minhas mensagens de texto?
— Recebi, obrigada. — Eu concordo
com a cabeça. Só umas 35, que lotaram
minha caixa de entrada.
Quando soube que perdi o celular,
Lucinda insistiu em encaminhar todas as
mensagens de texto recentes que tinha me
enviado, para que eu não “desanimasse”.
Para ser justa, foi uma bela de uma ideia.
Fiz com que Magnus encaminhasse todas
as mensagens recentes também, e as
garotas do trabalho.
Ned Murdoch, seja lá quem for,
finalmente fez contato com Sam. Esperei
por esse e-mail o dia todo. Olho para ele
distraidamente, mas ele não parece nada
de terrível: “Re Oferta de Ellerton. Sam,
oi. Alguns detalhes. Você pode ver no
anexo, blá-blá-blá...”
Enfim, melhor eu mandar logo. Aperto
o botão de encaminhar e me certifico de
que foi enviado. Em seguida, digito uma
resposta rápida para Magnus, com os
dedos tremendo de nervosismo.
Ótimo! Mal posso esperar para ver seus
pais!!!! Muito empolgada!!!! PS:
podemos nos encontrar do lado de fora antes?
Quero falar uma coisa. Só uma coisinha.
Bjsssss
Notas
22. Certo, não foram só algumas mensagens.
Foram umas sete. Mas só apertei o botão de
enviar para umas cinco.
23. Poirot provavelmente já teria descoberto.
24. Somos apenas três e nos conhecemos há
séculos. Então só de vez em quando desviamos
para outras áreas, como nossos namorados e a
liquidação da Zara.
25. Ou melhor, foi o pai dela. Ele já é dono de
uma cadeia de lojas de fotocópias.
26. E também ignora completamente as pobres
mulheres que torceram o tornozelo. Se você for
mulher, nunca corra a maratona quando Annalise
estiver de serviço.
27. Em minha defesa, era emergência. Natasha
tinha terminado com o namorado. E o paciente
não conseguia ver o que eu estava fazendo. Mas
eu sei que foi errado, sim.
28. Sei que as garotas dizem isso, mas o que
realmente querem dizer é: “Dei um ultimato a ele
e o deixei pensar que tinha tido a ideia sozinho, e
seis semanas depois, bingo.” Mas não foi assim.
Eu realmente não fazia ideia. Bem, você também
não faria, não é, depois de um mês?
29. Que aposto que ela não fez na hora de
almoço dela. Ela devia ter sido avaliada pelo
comitê disciplinar.
30. Que nós nunca usamos.
31. Na qual ninguém se registrou.
32. Pessoalmente, duvido da dita “experiência”
de Lucinda. Sempre que pergunto sobre outros
casamentos que ela planejou, ela só fala de um,
que foi de outra amiga e que consistia de 30
pessoas num restaurante. Mas obviamente nunca
falo isso na frente dos Tavish. Nem de Clemency.
Nem de ninguém.
33. Era para eu ser médium?
34. “Branco-cadáver” foi como ela chamou.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
Capitulo 3
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às 16:56
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