Image Map

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Capitulo 3

Na manhã seguinte, acordo de repente e

vejo o celular piscando com uma

mensagem de texto do hotel Berrow e me

sinto tão aliviada que quase sinto vontade

de chorar. Encontraram! Encontraram!

Meus dedos se atrapalham ao destravar

o celular; minha mente está a mil. Uma

faxineira do turno da madrugada

encontrou o anel entalado num aspirador

de pó... achou no banheiro... viu um brilho

no tapete... agora está guardado num cofre

do hotel...

Prezado Hóspede, oferta de metade do preço

nos feriados de verão. Visite

www.berrowhotellondon.co.uk para mais

detalhes. Atenciosamente, a equipe do

Berrow

Eu afundo na cama tomada pela

decepção. Sem mencionar a raiva de

quem me botou na lista da mala direta.

Como puderam fazer isso? Estão tentando

brincar com as minhas neuroses?

Ao mesmo tempo, uma compreensão

desagradável está se revirando em meu

estômago. Oito horas se passaram desde

que perdi o anel. Quanto mais tempo ele

passar perdido...

E se...

Nem consigo concluir meus

pensamentos. Levanto da cama de repente

e ando até a cozinha. Vou preparar uma

xícara de chá e mandar mais algumas

mensagens para Sam Roxton. Isso vai me

distrair um pouco.

O telefone começou a vibrar de novo

com mensagens de texto e e-mails, então

coloco a chaleira para esquentar, me sento

perto da janela e começo a verificá-los,

tentando desesperadamente não me encher

de esperanças. É claro que todas as

mensagens são de algumas amigas

perguntando se eu já encontrei o anel e

dando sugestões do tipo: Será que

verifiquei os bolsinhos dentro da minha

bolsa?

Não há nenhuma mensagem de Magnus,

embora eu tenha mandado algumas para

ele ontem à noite, perguntando o que mais

os pais dele tinham dito sobre mim,

quando ele planejava me contar, como eu

ia encará-los agora e se ele estava me

ignorando de propósito.22

Por fim, me dedico às mensagens de

Sam. Ele obviamente ainda não resolveu a

questão da transferência dos e-mails,

porque tem uns cinquenta que chegaram

durante a noite e esta manhã. Caramba, ele

tinha razão. A assistente tomava mesmo

conta da vida dele toda.

Há pessoas e assuntos de todos os

tipos aqui. O médico dele, colegas,

pedidos de caridade, convites... É como

uma linha direta para o universo de Sam.

Consigo descobrir onde ele compra

camisas (Turnbull & Asser). Consigo

descobrir em que faculdade ele estudou

(Durham). Consigo ver o nome do

encanador que trabalha para ele (Dean).

Conforme vou descendo os e-mails,

começo a me sentir desconfortável. Nunca

tive tanto acesso ao celular de outra

pessoa. Nem ao dos meus amigos. Nem

mesmo ao de Magnus. Tem certas coisas

que não se compartilha. Magnus já tinha

visto cada centímetro do meu corpo,

inclusive as partes das quais não me

orgulho, mas eu nunca, em hipótese

alguma o deixaria chegar perto do meu

celular.

As mensagens de Sam estão misturadas

aleatoriamente com as minhas, e isso é

bem estranho. Passo por duas mensagens

minhas, umas seis de Sam e outra minha.

Todas lado a lado; todas coladas entre si.

Nunca compartilhei uma caixa de entrada

com ninguém na vida. Eu não esperava

que a sensação fosse tão... íntima. É como

se de repente compartilhássemos a gaveta

de roupas íntimas ou algo parecido.

Seja como for, não é nada demais. Não

é por muito tempo.

Faço meu chá e encho uma tigela com

cereais. Enquanto mastigo, vou

selecionando as mensagens lentamente,

descobrindo quais são para Sam e

encaminhando as dele.

Não vou espioná-lo nem nada. Óbvio

que não. Mas tenho que clicar em cada

mensagem para encaminhá-la, e às vezes

meus dedos automaticamente apertam o

botão de abrir a mensagem sem querer e

dou uma olhada no texto. Só às vezes.

Está claro que não é só o pai dele que

está tendo dificuldade para entrar em

contato. Ele deve ser péssimo mesmo em

responder e-mails e mensagens de texto,

pois há tantos pedidos suplicantes para

Violet: “Esse é um bom meio de falar com

Sam?” “Oi! Me desculpe o incômodo,

mas deixei várias mensagens para Sam...”

“Oi, Violet. Será que você poderia dar um

toque em Sam sobre um e-mail que

mandei semana passada? Vou repetir os

pontos principais aqui...”

Não é que eu esteja lendo todos os emails

inteiros nem nada. Nem lendo os emails

anteriores. Nem criticando as

respostas dele e reescrevendo-as na

minha cabeça. Afinal, não é da minha

conta o que ele escreve ou não. Ele pode

fazer o que quiser. Moramos num país

livre. Minha opinião não vale de nada...

Meu Deus, as respostas dele são curtas

e grossas! Está me irritando! Será que

tudo precisa ser tão curto? Será que ele

precisa ser tão grosso e antipático?

Enquanto leio mais uma resposta curta,

não consigo deixar de exclamar em voz

alta:

— Você é alérgico a digitar ou algo do

tipo?

É ridículo. Parece que ele está

determinado a usar o menor número de

palavras possível.

Sim, tudo bem. Sam

Pronto. Sam

OK. Sam

Será que ele morreria se acrescentasse

“Abçs”? Ou uma carinha feliz? Ou se

dissesse obrigado?

E já que estou falando nisso, por que

ele não pode simplesmente responder? A

pobre Rachel Elwood está tentando

organizar uma competição de corrida para

arrecadar fundos para caridade e

perguntou duas vezes se ele podia

organizar uma equipe. Por que ele não ia

querer fazer isso? É divertido, saudável,

junta dinheiro para caridade, não é para

amar?

Ele também não respondeu sobre a

hospedagem para a conferência da

empresa em Hampshire na semana que

vem. Vai ser no hotel Chiddingford, que

parece excelente, e ele tem uma suíte

reservada, mas precisa especificar para

uma pessoa chamada Lindy se ainda está

planejando chegar tarde. Mas ele não

respondeu.

O pior de tudo é que a recepcionista do

dentista dele mandou e-mail para marcar

um check-up quatro vezes. Quatro vezes.

Não consigo evitar dar uma olhada na

correspondência anterior, e Violet

obviamente tinha desistido de tentar. Cada

vez que ela marcava a consulta, ele

mandava um e-mail dizendo: “Cancele.

S”. E uma vez até escreveu: “Você só

pode estar brincando.”

Será que ele quer que os dentes dele

apodreçam?

Quando estou saindo para o trabalho às

8h40, uma nova leva de e-mails chega.

Obviamente essas pessoas começam a

trabalhar logo de manhãzinha. O primeiro

é de Jon Mailer, com o assunto “Qual é a

história?”, o que parece bastante

intrigante. Então, enquanto ando pela rua,

eu o abro.

Sam.

Encontrei Ed no Groucho Club ontem à noite,

e ele estava péssimo. Só digo isso: não deixa

ele ficar no mesmo ambiente que Sir

Nicholas tão cedo, ou vai deixar?

Atenciosamente

Jon

Ah, agora também quero saber qual é a

história. Quem é Ed e por que ele estava

péssimo no Groucho Club?23

O segundo e-mail é de uma pessoa

chamada Willow, e quando clico nele,

meus olhos são agredidos por caixa alta

para todo lado.

Violet.

Vamos agir como adultas em relação a isso.

Você OUVIU minha briga com Sam. Não faz

sentido esconder nada de você.

Então, como Sam SE RECUSA a responder o

e-mail que enviei meia hora atrás, será que

você poderia fazer a gentileza de imprimir o

anexo e COLOCAR SOBRE A MESA DELE

PARA QUE ELE LEIA?

Muito obrigada.

Willow

Fico olhando para o celular em estado

de choque, quase com vontade de rir.

Willow deve ser a noiva dele. Rá.

O endereço de e-mail dela é

willowharte@consultoriawhiteglobe.com.

Então é óbvio que ela trabalha na

Consultoria White Globe, mas ainda

assim manda e-mails para ele? Não é

estranho? A não ser que talvez trabalhem

em andares diferentes. Faz sentido. Uma

vez mandei um e-mail para Magnus do

andar de cima para pedir que me fizesse

uma xícara de chá.

Fico curiosa para saber o que é o

anexo.

Meus dedos hesitam quando paro em

frente a uma faixa de pedestres. Seria

errado ler. Muito, muito errado. Quero

dizer, não é um e-mail aberto enviado

para várias pessoas em cópia. É um

documento particular entre duas pessoas

que têm um relacionamento. Eu não

deveria olhar. Já foi ruim o bastante eu ter

lido o e-mail do pai dele.

Mas, por outro lado... ela quer que seja

impresso, não quer? E colocado sobre a

mesa de Sam, onde qualquer pessoa

poderia ler se passasse por lá. E não sou

nada indiscreta. Não vou comentar isso

com ninguém; ninguém nem ao menos vai

saber que eu li...

Meus dedos parecem ter vida própria.

Já estou clicando no anexo. Leva um

tempo até eu colocar o documento em

foco, tem tanta letra em caixa alta.

Sam

Você ainda não me respondeu.

É o que pretende fazer? Você acha que isso

NÃO É IMPORTANTE?????

Meu Deus.

É apenas a coisa mais importante DAS

NOSSAS VIDAS. E como pode passar o dia

tão calmo... Não sei. Me dá vontade de

chorar.

Precisamos conversar, muito, muito mesmo.

E sei que em parte é minha culpa, mas até que

a gente comece a desfazer os nós JUNTOS,

como vamos saber quem está puxando qual

corda? Como?

O problema, Sam, é que às vezes nem sei se

você está segurando uma corda. A coisa está

ruim assim. NÃO SEI SE VOCÊ ESTÁ

SEGURANDO ALGUMA CORDA.

Consigo ver você balançando a cabeça, Sr.

Negação. Mas está. Está RUIM ASSIM,

OK???

Se você fosse um ser humano com um pingo

de emoção, estaria chorando a essa altura. Eu

estou. E esse é outro problema. Tenho uma

reunião às 10h com Carter, mas você

ESTRAGOU A PORRA TODA porque deixei

a PORRA DO RÍMEL em casa.

Então, sinta-se orgulhoso.

Willow

Meus olhos estão tão arregalados que

parecem dois pires. Nunca vi nada assim

na vida.

Releio o anexo, e de repente me vejo

dando risadinhas. Sei que eu não deveria.

Não é engraçado. É evidente que ela está

muito chateada. E sei que eu já falei umas

coisas terríveis para Magnus, quando

fiquei irritada e tomada pelos hormônios.

Mas eu jamais, jamais colocaria num email

e mandaria a assistente dele

imprimir...

Minha cabeça se ergue com uma

percepção repentina. Merda! Não há mais

Violet. Ninguém vai imprimir e colocar a

mensagem na mesa de Sam. Ele não vai

saber, não vai responder e Willow vai

ficar ainda mais furiosa. O pior de tudo é

que essa ideia me dá ainda mais vontade

de rir.

Eu me pergunto se esse é um dia ruim

ou se ela é sempre intensa assim. Não

consigo resistir a digitar “Willow” no

sistema de busca, e toda uma série de emails

aparece. Tem um de ontem, com o

assunto: “Você está tentando me foder ou

foder COMIGO, Sam? Ou SERÁ QUE NÃO

CONSEGUE DECIDIR?” E tenho outra crise

de risos. Nossa. Eles devem ter um desses

relacionamentos de altos e baixos. Talvez

joguem coisas um no outro, gritem e

berrem, depois façam sexo louco e

apaixonado na cozinha...

Beyoncé começa a gritar de repente no

celular e quase o deixo cair quando vejo

“Celular do Sam” escrito na tela. Tenho

um pensamento repentino e louco de que

ele deve ser médium e sabe que ando

espionando a vida amorosa dele.

Chega de xeretar, prometo

apressadamente para mim mesma. Nada

de buscar sobre Willow de novo. Conto

até três... e aperto o botão para atender.

— Ah, oi oi! — Tento parecer

relaxada e sem culpa, como se estivesse

pensando em outra coisa completamente

diferente e não em Sam fodendo a noiva

em cima de uma pilha de louça quebrada.

— Eu recebi um e-mail de Ned

Murdoch hoje de manhã? — Ele começa

sem nem falar um “oi”.

— Não. Encaminhei todos os e-mails.

E bom dia para você também —

acrescento com alegria. — Estou muito

bem, e você?

— Achei que você poderia ter deixado

passar um. — Ele ignora totalmente meu

comentário sarcástico. — É extremamente

importante.

— Bem, eu sou extremamente

cuidadosa — respondo, assertiva. —

Pode acreditar, tudo que chega nesse

aparelho está indo para você. E não

chegou nada de Ned Murdoch. Aliás, uma

pessoa chamada Willow acabou de

mandar um e-mail — acrescento

casualmente. — Vou encaminhar. Tem um

anexo que pareceu importante. Mas

obviamente, não olhei. Nem li, nem nada.

— Humm. — Ele dá uma espécie de

resmungo evasivo. — E aí, encontrou seu

anel?

— Ainda não — admito com

relutância. — Mas tenho certeza de que

vai aparecer.

— Você deveria informar à

seguradora, sabia? Às vezes tem um limite

de tempo para o comunicado. Uma colega

minha cometeu esse erro outro dia.

Seguradora? Limite de tempo?

De repente, me sinto tomada de culpa.

Não pensei nisso em momento algum. Não

verifiquei meu seguro nem o dos Tavish

nem nada. Em vez disso, estou em frente à

faixa de pedestres, deixando de andar e

lendo os e-mails de outras pessoas para

depois rir deles. Prioridades, Poppy.

— Certo — consigo dizer finalmente.

— É, eu já sabia. Estou cuidando disso.

Eu desligo e fico parada por um

momento, com o trânsito a toda à minha

frente. Parece que ele estourou minha

bolha. Tenho que contar a verdade. O anel

é dos Tavish. Eles precisam saber que foi

perdido. Tenho que contar a eles.

Oi! Sou eu, a garota que vocês não

querem que se case com seu filho.

Adivinhem, perdi o valioso anel da sua

família!

Vou me dar mais 12 horas, decido de

repente, e aperto o botão para acionar o

sinal de pedestres de novo. Só para ver o

que acontece. Só isso.

Depois conto para eles.

Sempre pensei que seria dentista. Várias

pessoas na minha família são, e sempre

me pareceu uma carreira boa. Mas aí,

quando eu tinha 15 anos, minha escola me

mandou para uma experiência de trabalho

na unidade de fisioterapia no hospital

local. Todos os fisioterapeutas eram tão

empolgados com o que faziam que focar

só em dentes passou a parecer pouco para

mim. E nunca me arrependi da minha

decisão. Tem tudo a ver comigo, ser

fisioterapeuta.

O First Fit Physio Studio fica a uma

caminhada de exatos 18 minutos do meu

apartamento em Balham, depois de uma

Costa e ao lado de uma Greggs, a padaria.

Não é o melhor emprego do mundo; eu

provavelmente ganharia mais se

trabalhasse em alguma academia chique

ou num grande hospital. Mas estou aqui

desde que me formei e não consigo me

imaginar trabalhando em qualquer outro

lugar. Além do mais, trabalho com

amigos. Você não abriria mão disso à toa,

abriria?

Chego às 9 horas, esperando encontrar

a reunião habitual da equipe. Temos

reunião toda quinta de manhã, na qual

discutimos sobre pacientes e metas, novas

terapias, a mais recente pesquisa, coisas

do tipo.24 Na verdade, tem um paciente em

particular sobre quem quero falar: a Sra.

Randall, minha doce paciente de 65 anos

com problema nos ligamentos. Ela está

praticamente recuperada, mas semana

passada veio duas vezes e esta semana,

marcou três horários. Já falei que ela só

precisa se exercitar em casa com os

elásticos Dyna Band, mas ela insiste que

precisa da minha ajuda. Acho que ela se

tornou completamente dependente de nós,

o que pode ser bom para o nosso caixa,

mas não é bom para ela.

Portanto, estou ansiosa pela reunião.

Mas, para minha surpresa, a sala de

reuniões está arrumada de modo diferente

do costume. A mesa foi empurrada para

um dos cantos com duas cadeiras atrás, e

há uma cadeira solitária de frente a ela no

meio da sala. Parece a arrumação para

uma entrevista.

A porta da recepção emite o sinal que

avisa que alguém entrou, e quando me

viro vejo Annalise entrando com uma

bandeja do Costa Coffee. Ela está com

uma trança elaborada no cabelo longo e

louro, idêntica a uma deusa grega.

— Oi, Annalise. O que está

acontecendo?

— É melhor você falar com Ruby. —

Ela me lança um olhar de lado, sem sorrir.

— Quê?

— Acho que eu não devo te dizer. —

Ela toma um gole de cappuccino, olhando

para mim com ar misterioso por cima do

copo.

O que está acontecendo agora?

Annalise é uma pessoa bastante irritadiça;

na verdade, ela é bastante infantil. Do

nada ela fica toda quietinha e rabugenta, e

aí você descobre que no dia anterior você

pediu com certa impaciência o histórico

de um paciente e isso acabou magoando

os sentimentos dela.

Ruby é o oposto. Ela tem a pele lisa,

da cor de café com leite, um busto enorme

e maternal e é tão cheia de bom-senso que

praticamente escorre pelas orelhas. No

minuto em que ela chega ao seu lado, você

se sente mais sã, mais calma, mais alegre

e mais forte. Não é surpresa que a clínica

de fisioterapia seja um sucesso. Annalise

e eu somos boas no que fazemos, mas

Ruby é a grande estrela. Todo mundo a

adora. Os homens, as mulheres, as vovós,

as crianças. Foi ela também quem juntou

dinheiro e investiu no negócio,25 então,

oficialmente, ela é a minha chefe.

— Bom dia, querida. — Ruby sai

rapidamente da sala de terapia, sorrindo

largamente, como o habitual. Seu cabelo

está penteado para trás e preso num

coque, com detalhes retorcidos de cada

lado. Tanto Annalise quanto Ruby

capricharam nos penteados. É quase como

uma competição entre as duas. — Olha só,

é um saco, mas preciso fazer uma

audiência disciplinar com você.

— O quê? — Olho para ela

boquiaberta.

— Não é culpa minha! — Ela ergue as

mãos. — Quero credenciamento de um

novo grupo, o PFFA. Andei lendo o

material deles, e eles dizem que se alguém

da equipe dá em cima de pacientes, essa

pessoa precisa ser punida. Devíamos ter

feito isso mesmo, você sabe, mas agora

tenho que ter os documentos prontos para

o inspetor. Vamos acabar rapidinho.

— Eu não dei em cima dele — falei,

na defensiva. — Ele deu em cima de mim!

— Acho que o comitê vai decidir isso,

não é? — diz Annalise, com hostilidade.

Ela está tão séria que fico até um pouco

preocupada. — Eu falei que você tinha

sido antiética — acrescenta ela. — Você

devia ser processada.

— Processada? — Eu apelo para

Ruby.

Não consigo acreditar que isso esteja

acontecendo. Quando Magnus me pediu

em casamento, Ruby disse que era uma

história tão romântica que ela tinha

vontade de chorar e que, tudo bem,

estritamente falando, era contra as regras,

mas na opinião dela o amor superava

tudo, e me perguntou se “por favor , ela

poderia ser dama de honra?”.

— Annalise, você não quer dizer

“processada”. — Ruby revira os olhos.

— Venha. Vamos montar o comitê.

— Quem compõe o comitê?

— Nós — diz Ruby com alegria. — Eu

e Annalise. Sei que devíamos ter alguém

de fora, mas eu não sabia quem chamar.

Vou dizer para o inspetor que convoquei

uma pessoa, mas ela ficou doente. — Ela

olha para o relógio. — Certo, temos vinte

minutos. Bom dia, Angela! — ela

acrescenta com alegria quando nossa

recepcionista abre a porta da frente. —

Não passe nenhuma ligação, está bem?

Angela apenas concorda, funga e solta

a bolsa no chão. O namorado dela toca

numa banda, então ela nunca é muito

comunicativa de manhã.

— Ah, Poppy — diz Ruby por cima do

ombro ao seguir na frente em direção à

sala de reuniões. — Eu devia ter dado

duas semanas de aviso para você se

preparar. Mas você não precisa disso

tudo de tempo, né? Podemos dizer que

você teve? Porque só falta um pouco mais

de uma semana para o casamento, e adiar

significaria tirar você da sua lua de mel

ou deixar para quando você voltasse, e eu

quero mesmo resolver a papelada...

Ela está me guiando até a cadeira

solitária, abandonada no meio da sala,

enquanto ela e Annalise tomam seus

lugares atrás da mesa. A qualquer minuto,

espero uma luz intensa ser apontada para

o meu rosto. Isso é horrível. Tudo de

repente mudou. São elas contra mim.

— Você vai me despedir? — Eu me

sinto ridiculamente em pânico.

— Não! É claro que não! — Ruby está

desenroscando a tampa da caneta. — Não

seja boba!

— Poderíamos — diz Annalise, me

lançando um olhar ameaçador.

Obviamente, ela está adorando o papel

de Braço Direito da chefona. Eu sei por

que tudo isso. É porque eu fiquei com

Magnus e ela não.

O problema é o seguinte: Annalise é a

mais bonita. Até mesmo eu quero ficar

olhando para ela o dia todo, e eu sou

mulher. Se você dissesse para qualquer

pessoa no ano passado “Qual dessas três

vai fisgar um cara e ficar noiva até a

primavera?”, ela teria dito imediatamente:

“Annalise.”

Por isso consigo entender seu ponto de

vista. Ela deve se olhar no espelho e se

ver (deusa grega), depois me ver (pernas

finas, cabelo escuro, melhor

característica: cílios longos) e pensar...

“PQP. Sério?”

Além do mais, como eu já tinha dito,

Magnus estava marcado com ela a

princípio. E, no último minuto, trocamos

de pacientes. O que não é culpa minha.

— Pois bem. — Ruby tira os olhos do

bloco pautado. — Vamos pontuar os fatos,

Srta. Wyatt. No dia 15 de dezembro do

ano passado, você atendeu um homem

chamado Sr. Magnus Tavish aqui na

clínica.

— Sim.

— Qual era o tipo de lesão?

— Torção de pulso durante prática de

esqui.

— E ao longo dessa consulta ele

demonstrou... algum interesse por você

que fosse inadequado? Ou você por ele?

Puxo do fundo da minha memória

aquele primeiro instante em que Magnus

entrou na minha sala. Ele usava um casaco

comprido cinza de tweed, o cabelo

castanho-avermelhado brilhava por causa

da chuva e o rosto estava vermelho por ter

andado rápido. Ele estava dez minutos

atrasado e entrou correndo, segurou

minhas mãos e disse “Mil perdões pelo

atraso” com uma voz adorável e bemeducada.

— Eu... hum... não — falei, na

defensiva. — Foi só uma consulta padrão.

No momento em que digo isso, sei que

não é verdade. Em consultas rotineiras,

seu coração não dispara quando você

segura o braço do paciente. Os cabelos da

sua nuca não ficam eriçados. Você não

segura a mão dele só um pouquinho mais

do que precisa.

Não que eu possa dizer qualquer uma

dessas coisas. Eu realmente seria

demitida.

— Eu tratei o paciente durante o

período de uma série de consultas. —

Tento parecer calma e profissional. —

Quando percebemos o que sentíamos um

pelo outro, o tratamento dele já tinha

terminado. Portanto, foi totalmente ético.

— Ele me falou que foi amor à

primeira vista! — diz Annalise. — Como

você explica isso? Ele me disse que

vocês ficaram instantaneamente atraídos

um pelo outro e que ele queria atacar você

ali mesmo, no sofá. Contou que nunca viu

nada tão sexy quanto você de uniforme.

Vou dar um tiro em Magnus. Para que

ele foi dizer isso?

— Protesto! — Eu olho para ela com

raiva. — A evidência foi obtida sob

influência de álcool e de uma forma não

profissional. Portanto, não pode ser

utilizada no tribunal.

— Pode sim! E você está sob

juramento! — Ela aponta o dedo para

mim.

— Protesto aceito — interrompe Ruby,

levantando os olhos ao terminar de

escrever com um olhar distante e

melancólico. — Foi mesmo amor à

primeira vista? — Ela se inclina para a

frente e seus grandes seios uniformizados

se espalham para todos os lados. — Você

sabia?

Fecho os olhos e tento visualizar

aquele dia. Não tenho certeza sobre o que

eu sabia além de que eu também queria

atacá-lo no sofá.

— Sabia — digo, por fim. — Acho

que sim.

— É tão romântico — suspira Ruby.

— E errado! — grita Annalise com

severidade. — Assim que ele demonstrou

interesse, você deveria ter dito: “Senhor,

este comportamento é inadequado.

Gostaria de encerrar esta consulta e que

você fosse atendido por outra

fisioterapeuta.

— Ah, outra fisioterapeuta! — Não

consigo segurar uma risada. — Como

você, por acaso?

— Talvez! Por que não?

— E se ele tivesse demonstrado

interesse por você?

Ela ergue o queixo com orgulho.

— Eu teria lidado com a situação sem

comprometer meus princípios éticos.

— Eu fui ética! — digo, revoltada. —

Fui completamente ética!

— Ah, é? — Ela aperta os olhos, como

um advogado de acusação. — O que

levou você a sugerir trocar de consultas

comigo antes da primeira consulta dele,

Srta. Wyatt? Será que já não tinha jogado

o nome dele no Google e decidido que

queria ele pra você?

Já não resolvemos isso?

— Annalise, você quis trocar de

consultas! Nunca sugeri nada! Eu nem

fazia ideia de quem ele era! Então se você

acha que saiu perdendo, azar o seu. Da

próxima vez, não troque!

Por um momento, Annalise não diz

nada. O rosto dela vai ficando cada vez

mais e mais rosa.

— Eu sei — diz ela, e bate com o

punho na testa. — Eu sei! Fui tão burra.

Por que fui trocar?

— E daí? — interrompe Ruby com

firmeza. — Annalise, supera. Magnus

obviamente não era para ser seu, era para

ser de Poppy. Que importância tem?

Annalise fica em silêncio. Percebo que

não está convencida.

— Não é justo — murmura ela,

finalmente. — Você sabe quantos

banqueiros massageei na Maratona de

Londres? Você sabe o quanto me

esforcei?

Annalise começou a se interessar pela

Maratona de Londres havia alguns anos,

quando estava assistindo na TV e

percebeu que tinha um bando de caras de

40 anos sarados e cheios de energia que

provavelmente estavam solteiros porque a

única coisa que faziam era correr, e é

verdade que 40 anos era meio velho, mas

pense no tipo de salário que eles devem

ganhar.

Assim, ela começou a se voluntariar

como fisioterapeuta de emergência todos

os anos depois disso. Ela vai pelo faro

direto para os homens atraentes e

massageia os músculos da panturrilha ou

algum outro enquanto os mira com os

enormes olhos azuis e diz que sempre

ajudou aquela mesma instituição de

caridade.26

Para ser justa, ela já conseguiu muitos

encontros assim (um cara até a levou a

Paris), mas nada mais duradouro ou sério,

que é o que ela quer. O que ela não

admite, óbvio, é o elevado grau de

exigência que tem. Ela finge que quer “um

cara legal e sincero com bons valores”,

mas vários assim já ficaram

desesperadamente apaixonados por ela. E

ela deu o fora neles, até naquele ator que

era bem bonito (a peça dele saiu de cartaz

e ele não tinha outra para fazer depois). O

que ela quer mesmo é um cara que parece

saído de um comercial da Gilette com um

salário enorme e/ou um título. De

preferência, os dois. Acho que é por isso

que ela está tão furiosa por ter perdido

Magnus, pois ele é “doutor”. Uma vez ela

me perguntou se ele se tornaria “pósdoutor”

um dia e eu disse que

provavelmente sim, e ela ficou meio

verde.

Ruby escreve alguma coisa e tampa a

caneta.

— Bem, acho que cobrimos os fatos.

Muito bem, pessoal.

— Você não vai dar uma advertência a

ela nem nada? — Annalise ainda está

fazendo beicinho.

— Ah, é justo. — diz Ruby, e limpa a

garganta. — Poppy, não faça isso de

novo.

— Tudo bem. — Eu dou de ombros.

— Vou colocar essa declaração por

escrito e mostrar para o inspetor. Isso

deve calar a boca dele. Aliás, eu disse

que encontrei o sutiã sem alças perfeito

para colocar com meu vestido de dama de

honra? — Ruby dá um sorrisão para mim,

voltando a ser a pessoa alegre de sempre.

— É de cetim verde-azulado. Um luxo.

— Parece incrível! — Eu me levanto e

estico a mão em direção à bandeja do

Costa Coffee. — Um desses é pra mim?

— Eu trouxe para você um café com

leite — diz Annalise de má vontade. —

Com noz moscada.

Quando o pego, Ruby sufoca um

gritinho.

— Poppy! Você não achou o anel?

Levanto a cabeça e vejo Annalise e

Ruby olhando para a minha mão esquerda.

— Não — admito com relutância. —

Quero dizer, tenho certeza de que vai

aparecer em algum lugar...

— Merda. — Annalise está com a mão

por cima da boca.

— Achei que tivesse encontrado. —

Ruby está com a testa franzida. — Eu

tinha certeza de que alguém me disse que

você tinha encontrado.

— Não. Ainda não.

E u realmente não estou gostando da

reação delas. Nenhuma das duas está

dizendo “não se preocupe” nem “essas

coisas acontecem”. As duas parecem

horrorizadas, até mesmo Ruby.

— O que você vai fazer então? — As

sobrancelhas de Ruby estão quase unidas.

— O que Magnus disse? — pergunta

Annalise.

— Eu... — Tomo um gole do café para

ganhar tempo. — Ainda não contei pra

ele.

— Ai, meu Deus — diz Ruby baixinho.

— Quanto ele vale? — Posso contar

com Annalise fazer todas as perguntas

sobre as quais não quero pensar.

— Muito, eu acho. Mas tem sempre o

seguro... — falo de forma nada

convincente.

— Quando você pretende contar para o

Magnus? — Ruby está com uma expressão

desaprovadora. Odeio essa expressão.

Ela faz com que eu me sinta pequena e

humilhada. Como naquela vez horrível em

que ela me pegou fazendo um ultrassom e

enviando mensagem de texto ao mesmo

tempo.27 Ruby é daquelas pessoas que

você instintivamente quer impressionar.

— Hoje à noite. Nenhuma de vocês viu

o anel por aí, né? — Não consigo evitar a

pergunta, embora seja uma pergunta

ridícula, como se de repente elas fossem

dizer: “Ah, vi sim, está na minha bolsa!”

As duas dão de ombros, indicando um

não silencioso. Até Annalise parece estar

com pena de mim.

Ai, Deus. Minha situação está bem

ruim.

Às 6 horas da tarde, a situação está ainda

pior. Annalise jogou “anéis de esmeralda”

no Google.

Eu pedi para ela fazer essa pesquisa?

Não. Não pedi. Magnus nunca me contou

quanto vale o anel. Eu perguntei

brincando quando ele o colocou no meu

dedo pela primeira vez, e ele brincou em

resposta que era valiosíssimo, como eu.

Foi tudo tão lindo e romântico. Estávamos

jantando no Bluebird e eu não fazia ideia

de que ele ia me pedir em casamento.

Nem sonhava.28

Mas a questão é que eu nunca soube o

preço do anel e nunca quis saber. Fico

treinando em pensamento coisas que

posso dizer para Magnus, como “Bem, eu

não sabia que era tão valioso! Você devia

ter me contado!”.

Não que eu tivesse coragem de dizer

isso. O quão burra você precisa ser para

não perceber que uma esmeralda saída de

um cofre de banco vale uma bela quantia?

Ainda assim, é um certo consolo não ter

um valor preciso na cabeça.

Mas agora Annalise está segurando

uma folha de papel que ela imprimiu da

internet.29

— Esmeralda de alta qualidade, art

déco, com diamantes baguete. — Ela lê.

— Estimativa: 25 mil libras.

O quê? Minhas entranhas viram geleia.

Isso não pode estar certo.

— Ele não me daria uma coisa tão

cara. — Minha voz está meio trêmula. —

Professores são pobres.

— Ele não é pobre! É só ver a casa

dos pais dele! O pai dele é uma

celebridade! Olha aqui, esse custa 30 mil.

— Ela mostra outra folha de papel. — É

exatamente igual ao seu. Você não acha,

Ruby?

Não consigo olhar.

— Eu jamais tiraria esse anel do dedo

— acrescenta Annalise, arqueando as

sobrancelhas, e quase sinto vontade de

bater nela.

— Foi você quem quis experimentar!

— digo furiosamente. — Se não tivesse

sido por você, eu ainda teria o anel!

— Não fui eu! — responde ela com

indignação. — Eu só experimentei porque

todo mundo estava experimentando. Já

estava circulando pela mesa.

— Então de quem foi a ideia?

Eu andei fundindo o cérebro quanto a

isso outra vez, mas se minha memória

estava devagar ontem, hoje está ainda

pior.

Nunca vou acreditar num mistério de

Poirot novamente. Nunca. Todas aquelas

testemunhas dizendo: “Sim, eu me lembro

que eram exatamente 15h06 porque olhei

para o relógio ao pegar a colher do

açúcar, e Lady Favisham estava

claramente sentada no lado direito da

lareira.”

Baboseira. Eles não têm ideia de onde

Lady Favisham estava, só não querem

admitir na frente de Poirot. Fico

impressionada que ele consiga chegar a

algum resultado.

— Tenho que ir. — Eu me viro antes

de Annalise poder me provocar com

outros anéis caros.

— Contar para Magnus?

— Primeiro tenho uma reunião sobre o

casamento com Lucinda. Depois com

Magnus e a família dele.

— Depois diz para a gente o que

aconteceu. Manda um SMS! — Annalise

franze a testa. — Aliás, isso me lembrou

de uma coisa, Poppy... por que você

mudou seu número?

— Ah, é. Bem, eu saí do hotel para

conseguir um sinal melhor e estava

segurando o celular com a mão esticada...

Eu paro de falar. Pensando bem, não

estou disposta a falar de toda a história do

roubo e do celular no lixo e de Sam

Roxton. É complicado demais e não tenho

energia para isso.

Em vez disso, dou de ombros.

— Foi que... você sabe. Perdi meu

celular. Comprei outro. Vejo vocês

amanhã.

— Boa sorte, senhorita. — Ruby me

puxa e me dá um rápido abraço.

— SMS! — ouço Annalise gritar atrás

de mim quando saio pela porta. —

Queremos atualizações a cada hora!

Ela teria sido ótima em execuções

públicas, a Annalise. Teria sido a que fica

na frente, lutando para ter uma boa visão

do machado, já esboçando os detalhes

sangrentos para colocar no quadro de

avisos da aldeia para o caso de alguém ter

perdido.

Ou, sei lá, fazer o que quer que fosse

que faziam antes do Facebook existir.

Não sei por que me dou o trabalho de

correr, porque Lucinda está atrasada,

como sempre.

Na verdade, não sei por que me dei o

trabalho de ter uma cerimonialista. Mas

só tenho esse pensamento em segredo,

porque Lucinda é uma velha amiga da

família Tavish e, toda vez que a

menciono, Magnus diz “Vocês duas estão

se dando bem?” num tom esperançoso,

como se fôssemos dois pandas em

extinção que têm que fazer um bebê.

Não é que eu não goste de Lucinda.

Mas ela me estressa. Ela me manda

relatórios por mensagem de texto o tempo

todo informando o que está fazendo e

onde está, e fica me dizendo que tremendo

esforço ela está fazendo por mim, como

na aquisição dos guardanapos, que acabou

sendo uma saga enorme que demorou uma

eternidade e exigiu três idas ao depósito

de tecidos em Walthamstow.

Além do mais, as prioridades dela

parecem um pouco distorcidas. Por

exemplo, ela contratou um “Especialista

em TI de Casamentos” por um preço

altíssimo, que criou coisas como um

sistema de alerta por mensagem de texto

que envia atualizações aos convidados30 e

uma página na internet em que os

convidados podem registrar quais roupas

vão vestir e evitar “coincidências

infelizes”.31 Mas ao mesmo tempo em que

fazia tudo isso, ela não fez contato com o

bufê que queríamos e nós quase o

perdemos.

Vamos nos encontrar no saguão do

Claridge’s. Lucinda adora saguões de

hotel, não me pergunte por quê. Fico

pacientemente sentada lá por vinte

minutos, bebendo um chá preto fraco,

desejando ter cancelado o encontro e me

sentindo cada vez mais enjoada ao pensar

em ver os pais de Magnus. Estou

imaginando se vou mesmo ter que ir ao

toalete para vomitar quando ela aparece

de repente, com cabelos negros ao vento,

perfume Calvin Klein e seis ilustrações

debaixo do braço. Os sapatos de camurça

de saltos baixos e bico fino cor-de-rosa

estalam no piso de mármore e o casaco

rosa de caxemira esvoaça atrás dela como

um par de asas.

Logo atrás dela vem Clemency, a

“assistente”. (Isso se uma garota de 18

anos que não recebe salário pode ser

chamada de assistente. Eu chamaria de

escrava.) Clemency é elegante, doce e

morre de medo de Lucinda. Ela respondeu

ao anúncio de Lucinda no The Lady, que

pedia uma estagiária, e vive me dizendo o

quanto é ótimo aprender o ofício em

primeira mão com uma profissional

experiente.32

— Andei conversando com o vigário.

Essa disposição não vai funcionar. A

porcaria do púlpito tem que ficar no lugar.

— Lucinda se senta esparramada com as

longas pernas dentro de uma calça Joseph,

e as pranchetas caem todas no chão. —

Não sei por que as pessoas não podem ser

ma i s prestativas. O que vamos fazer

agora? E nem tive resposta do bufê...

Mal consigo me concentrar no que ela

está dizendo. De repente me pego

querendo ter combinado de encontrar

Magnus primeiro, sozinha, para contar

sobre o anel. Assim, poderíamos encarar

o pai dele juntos. Será que é tarde

demais? Será que eu poderia mandar uma

mensagem de texto rápida no caminho?

— ... e ainda não consegui um

trombeteiro. — Lucinda expira com força

com duas unhas pintadas encostadas à

testa. — Tem tanta coisa por fazer. É uma

l oucur a. Loucura. Teria ajudado se

Clemency tivesse digitado a Ordem de

Serviço corretamente — acrescenta ela

com um pouco de grosseria.

A pobre Clemency fica vermelha como

uma beterraba e lanço um sorriso

simpático a ela. Não é culpa dela ser

disléxica e ter escrito “quântico” em vez

de “cântico” e a coisa toda ter que ser

refeita.

— Vai dar tudo certo! — digo de

maneira encorajadora. — Não se

preocupe!

— Tenho que dizer que depois que

isso acabar, vou precisar de uma semana

num spa. Você viu minhas mãos? — Ela

as empurra em minha direção. — Isso é

estresse!

Não tenho a menor ideia do que

Lucinda está falando, as mãos dela

parecem perfeitamente normais para mim.

Mas olho para elas obedientemente.

— Está vendo? Destruídas. Tudo por

seu casamento, Poppy! Clemency, peça

um gim com tônica para mim.

— Certo. Pode deixar. — Clemency dá

um salto e fica de pé com ansiedade.

Tento ignorar uma leve irritação.

Lucinda sempre solta coisas assim no

meio da conversa: “Tudo pelo seu

casamento.” “Só para fazer você feliz,

Poppy.” “A noiva sempre tem razão!”

Ela é bem grosseira às vezes, e acho

isso um tanto desconcertante. Não pedi

que ela fosse cerimonialista, pedi? E

estamos pagando muito dinheiro a ela, não

estamos? Mas não quero dizer nada

porque ela é velha amiga de Magnus e

tudo mais.

— Lucinda, eu estava pensando, já

escolhemos os carros? — pergunto com

hesitação.

Fica um silêncio sinistro. Percebo que

há uma onda de fúria crescendo em

Lucinda pelo jeito que o nariz dela

começa a tremer. Por fim, a onda surge, na

hora em que a pobre Clemency volta.

— Ah, maldição. Ah, porra...

Clemency! — Ela dirige a ira para a

garota trêmula. — Por que você não me

lembrou dos carros? Eles precisam de

carros! Precisamos reservar!

— Eu... — Clemency olha indefesa

para mim. — Hum... Eu não sabia...

— Sempre tem alguma coisa! —

Lucinda está quase falando sozinha. —

Sempre falta alguma coisa em que se

pensar. Não tem fim. Por mais que eu dê

tudo de mim, não acaba nunca...

— Olha, posso cuidar dos carros? —

digo apressadamente. — Tenho certeza de

que posso escolher.

— Você faria isso? — Lucinda parece

despertar. — Será que você pode fazer

isso? É que sou uma só, sabe, e passo a

semana toda trabalhando nos detalhes,

tudo pelo seu casamento. Poppy...

Ela parece tão estressada que me sinto

um pouco culpada.

— Claro! Sem problemas. É só eu

procurar nas Páginas Amarelas ou algo do

tipo.

— E como está indo com o seu cabelo,

Poppy? — Ela então se concentra na

minha cabeça, e eu silenciosamente

mando meu cabelo crescer rapidinho mais

um centímetro.

— Nada mal! Tenho certeza de que vai

dar para fazer o coque. Com certeza. —

Tento parecer mais otimista do que me

sinto.

Lucinda me falou umas cem vezes o

quanto eu fui limitada e tola de cortar meu

cabelo acima do ombro quando estava

prestes a ficar noiva.33 Também me falou

na loja de vestidos de noiva que, com a

minha pele pálida,34 um vestido branco

nunca ia ficar bom e que eu devia usar

verde-limão. No meu casamento.

Felizmente, a dona da loja de vestidos de

noiva se meteu e disse que Lucinda estava

falando besteira: meus cabelos e olhos

escuros ficariam lindos com o branco.

Preferi acreditar nela.

A bebida chega e Lucinda toma um

grande gole. Tomo outro gole de chá preto

morno. A pobre Clemency não está

bebendo nada, mas parece estar tentando

se fundir com a cadeira e não chamar

atenção nenhuma.

— e... você ia pesquisar sobre o

confete? — pergunto com cautela. — Mas

posso fazer isso também. — Recuo

rapidamente ao ver a expressão de

Lucinda. — Vou ligar para o vigário.

— Ótimo! — Lucinda expira

intensamente. — Eu adoraria que você

fizesse isso! Porque eu sou uma só e

consigo estar em apenas um lugar de cada

vez... — Ela para de falar abruptamente

quando seu olhar cai sobre minha mão. —

Onde está seu anel, Poppy? Ah, meu Deus,

você ainda não o encontrou?

Quando ela ergue o olhar, parece tão

estupefata que começo a me sentir enjoada

de novo.

— Ainda não. Mas vai aparecer logo.

Tenho certeza. A equipe do hotel está

procurando...

— E você não contou a Magnus?

— Vou contar! — Engulo em seco. —

Em breve.

— Mas não é uma joia importante da

família? — Os olhos cor de mel de

Lucinda estão arregalados. — Não vão

ficar furiosos?

Ela está tentando me fazer ter um

colapso nervoso?

Meu telefone vibra e eu pego o

aparelho, agradecida pela distração.

Magnus acabou de me mandar uma

mensagem de texto que frustra minha

esperança secreta de os pais dele

repentinamente desenvolverem uma

infecção estomacal e terem que cancelar.

Jantar às 8, família toda aqui, mal podem

esperar para te ver!

— É seu celular novo? — Lucinda

franze a testa de forma crítica ao vê-lo. —

Você recebeu minhas mensagens de texto?

— Recebi, obrigada. — Eu concordo

com a cabeça. Só umas 35, que lotaram

minha caixa de entrada.

Quando soube que perdi o celular,

Lucinda insistiu em encaminhar todas as

mensagens de texto recentes que tinha me

enviado, para que eu não “desanimasse”.

Para ser justa, foi uma bela de uma ideia.

Fiz com que Magnus encaminhasse todas

as mensagens recentes também, e as

garotas do trabalho.

Ned Murdoch, seja lá quem for,

finalmente fez contato com Sam. Esperei

por esse e-mail o dia todo. Olho para ele

distraidamente, mas ele não parece nada

de terrível: “Re Oferta de Ellerton. Sam,

oi. Alguns detalhes. Você pode ver no

anexo, blá-blá-blá...”

Enfim, melhor eu mandar logo. Aperto

o botão de encaminhar e me certifico de

que foi enviado. Em seguida, digito uma

resposta rápida para Magnus, com os

dedos tremendo de nervosismo.

Ótimo! Mal posso esperar para ver seus

pais!!!! Muito empolgada!!!! PS:

podemos nos encontrar do lado de fora antes?

Quero falar uma coisa. Só uma coisinha.

Bjsssss

Notas

22. Certo, não foram só algumas mensagens.

Foram umas sete. Mas só apertei o botão de

enviar para umas cinco.

23. Poirot provavelmente já teria descoberto.

24. Somos apenas três e nos conhecemos há

séculos. Então só de vez em quando desviamos

para outras áreas, como nossos namorados e a

liquidação da Zara.

25. Ou melhor, foi o pai dela. Ele já é dono de

uma cadeia de lojas de fotocópias.

26. E também ignora completamente as pobres

mulheres que torceram o tornozelo. Se você for

mulher, nunca corra a maratona quando Annalise

estiver de serviço.

27. Em minha defesa, era emergência. Natasha

tinha terminado com o namorado. E o paciente

não conseguia ver o que eu estava fazendo. Mas

eu sei que foi errado, sim.

28. Sei que as garotas dizem isso, mas o que

realmente querem dizer é: “Dei um ultimato a ele

e o deixei pensar que tinha tido a ideia sozinho, e

seis semanas depois, bingo.” Mas não foi assim.

Eu realmente não fazia ideia. Bem, você também

não faria, não é, depois de um mês?

29. Que aposto que ela não fez na hora de

almoço dela. Ela devia ter sido avaliada pelo

comitê disciplinar.

30. Que nós nunca usamos.

31. Na qual ninguém se registrou.

32. Pessoalmente, duvido da dita “experiência”

de Lucinda. Sempre que pergunto sobre outros

casamentos que ela planejou, ela só fala de um,

que foi de outra amiga e que consistia de 30

pessoas num restaurante. Mas obviamente nunca

falo isso na frente dos Tavish. Nem de Clemency.

Nem de ninguém.

33. Era para eu ser médium?

34. “Branco-cadáver” foi como ela chamou.

0 Comments:

Postar um comentário