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terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Capitulo 2


As mãos que o puxaram só pararam de se agitar ao seu redor
quando Thomas se levantou e sacudiu a poeira da camisa e das calças.
Ainda atordoado pela claridade, hesitou um pouco. Estava
morrendo de curiosidade, mas sentia-se muito enjoado para observar o local
mais atentamente.
Seus novos companheiros não disseram nada quando rolou a cabeça
de um lado para o outro, tentando assimilar tudo.

Enquanto dava uma volta em torno de si mesmo, os outros garotos
riam-se dele e o encaravam; alguns estenderam a mão e cutucaram-no com
o dedo. Deviam ser pelo menos uns cinquenta ao todo, as roupas sujas e
amassadas, como se tivessem interrompido algum trabalho pesado, um
garoto diferente do outro, de vários tamanhos e raças, e cabelos de
comprimentos variados. De repente, Thomas sentiu-se atordoado, os olhos
indo e voltando dos garotos para aquele lugar bizarro em que se encontrava.
Estavam em um vasto pátio, várias vezes maior do que um campo
de futebol, cercado por quatro muros enormes de pedra cinzenta, cobertos
por uma hera espessa que se espalhava em manchas desiguais. As paredes
pareciam ter mais de cem metros de altura e formavam um quadrado
perfeito ao redor daquele espaço.Cada lado era dividido exatamente ao
meio por uma abertura tão alta quanto os próprios muros e que, até onde
Thomas conseguia ver, levava a passagens e corredores compridos que se
estendiam a perder de vista.

- Olhem só o Novato - zombou uma voz fanhosa, que Thomas não
conseguiu distinguir de onde vinha. – Vai acabar quebrando o pescoço
inspecionando seu novo alojamento.

Vários garotos riram.

- Feche essa matraca, Gally - interveio uma voz mais grave.

Thomas procurou identificar alguém em meio às dezenas de
estranhos ao seu redor. Sabia que devia parecer muito deslocado - sentia-se
como se tivesse sido drogado. Um garoto alto, de cabelo louro e queixo
quadrado, franziu o nariz na sua direção, o rosto inexpressivo. Um outro,
baixinho e rechonchudo, inquietava-se, oscilando para frente e para trás em
pé, fixando Thomas com os olhos arregalados. Um jovem asiático,
corpulento e musculoso, cruzou os braços enquanto analisava Thomas, a
camisa justa e de mangas arregaçadas exibindo os bíceps. Um rapaz de pele
escura franziu as sobrancelhas - o mesmo que lhe dera as boas-vindas.
Vários outros o observavam.

- Onde estou? - quis saber Thomas, surpreso ao ouvir a própria voz
pela primeira vez até onde conseguia se lembrar. Ela soava um pouco
estranha... mais aguda do que tinha imaginado.

- Um lugar nada bom. - A resposta partiu do rapaz de pele escura. -
Agora procure relaxar e acalmar-se.

- Que tipo de encarregado ele vai dar?

- gritou alguém de trás do grupo.

- Já disse, cara de mértila (shuck-face)

- uma voz estridente respondeu. - Ele é um idiota, logo será um
Slopper... Não tenho a menor dúvida quanto a isso. - O garoto riu como se
tivesse contado a piada mais engraçada do mundo.

Uma vez mais, Thomas sentiu uma pressão de ansiedade no peito -
eram tantas palavras e expressões que não faziam sentido. Shank (trolha),
encarregado. Slopper. Elas saíam tão naturalmente da boca dos garotos que
parecia estranho ele não entender.

Como se a sua perda de memória tivesse roubado um pedaço da sua
compreensão - não entendia nada.
Diferentes emoções se chocavam em sua cabeça, atordoando a
mente e sufocando o coração. Confusão.
Curiosidade. Pânico. Medo. Mas todas essas emoções eram
permeadas por uma sombria sensação de desamparo absoluto, como se o
mundo tivesse acabado para ele, como se tivesse sido arrancado de sua
memória e substituído por algo sinistro. A sua vontade era sair correndo e
se esconder daquela gente.

O garoto de voz fanhosa voltara a falar:
...ou nem mesmo isso; aposto o meu fígado. - Thomas ainda não
conseguia ver o rosto dele.

- Eu disse, calem a matraca! - gritou o rapaz de pele escura. -
Continuem tagarelando e o próximo vai ser partido ao meio!
Aquele devia ser o líder, concluiu Thomas. Detestando a maneira
como caçoavam dele, procurou se concentrar em avaliar o lugar que o rapaz
chamara de clareira.

Adiante havia um pátio cujo chão era composto de enormes blocos
de pedra, muitos deles rachados e entranhados de grama e ervas daninhas
crescidas. Perto de um dos cantos do quadrado, uma estranha construção de
madeira, meio decadente, contrastava completamente com as pedras
acinzentadas. Era cercada por algumas árvores, as suas raízes parecidas com
mãos encarquilhadas embrenhando-se no chão rochoso em busca de
alimento. Em outro canto do conjunto via-se uma espécie de plantação - de
onde se encontrava, Thomas reconheceu uns pés de milho, alguns
tomateiros, árvores frutíferas.

Do outro lado do pátio, alinhavam-se currais de madeira, em que
eram guardados ovelhas, porcos e vacas. Um bosque amplo ocupava todo o
último canto; as árvores mais próximas parecendo um tanto enrugadas e à
beira da morte. O céu acima deles não tinha nuvens, era muito azul, mas
Thomas não viu nem sinal do sol, apesar da claridade do dia. As sombras
difusas dos muros não revelavam a hora nem a direção dos raios solares -
podia ser de manhã cedo ou final de tarde. Ele respirou fundo, numa
tentativa de acalmar os nervos, e uma mistura de cheiros o invadiu. Lixo
recente, estrume, perfume de pinheiros, um aroma podre e adocicado. De
algum modo sabia que aqueles eram os cheiros de uma fazenda.
Thomas voltou-se para os seus captores, sentindo-se pouco à
vontade, mas ao mesmo tempo desesperado para fazer perguntas.
“Captores”, pensou. Depois refletiu: “Por que essa palavra surgiu na minha
cabeça?”
Correu os olhos pelos rostos, apreendendo cada expressão,
avaliando-os Os olhos de um garoto, faiscando de ódio, o gelaram. O
garoto parecia tão cheio de raiva que Thomas não se surpreenderia se ele
avançasse na sua direção com uma faca. Tinha o cabelo preto, e, quando os
seus olhares se encontraram, o garoto abanou a cabeça e virou-se,
aproximando-se de um poste de ferro todo besuntado, com um banco de
madeira ao lado. Uma bandeira multicolorida pendia inerte do alto do
poste, sem vento que revelasse o seu desenho.

Assustado, Thomas ficou mirando as costas do garoto até ele se
virar para sentar-se no banco. Thomas rapidamente desviou o olhar.
De repente, o líder do grupo – talvez tivesse uns dezessete anos –
deu um passo à frente. Usava roupas comuns: camiseta preta, jeans, tênis,
relógio digital. Por alguma razão, Thomas surpreendia-se com as roupas
que via; era como se cada um devesse estar usando algo mais ameaçador -
como um uniforme de prisão. O rapaz moreno tinha o cabelo cortado curto,
o rosto bem barbeado. Mas além das sobrancelhas sempre franzidas, não
aparentava nada que causasse medo.

- É uma longa história, shank (trolha)

- disse o rapaz. - Pouco a pouco, você vai descobrir... Vou conversar
com você amanhã, no Passeio. Até lá, procure não quebrar nada. -
Estendeu a mão. - Meu nome é Alby.

- Ficou esperando, sem dúvida, para apertarem as mãos.

Mas Thomas não apertou a mão dele, os movimentos inibidos por
um instinto desconhecido. Sem dizer nada, deu as costas a Alby e
encaminhou-se até a árvore mais próxima, onde deixou-se afundar no chão,
apoiando as costas de encontro à casca rugosa. Voltou a ser dominado por
uma onda de pânico, forte quase a ponto de parecer insuportável.
Mas respirou fundo e fez um esforço para aceitar a situação. “Deixa
rolar”, pensou. “Não vai adiantar nada me entregar ao medo.”

- Então me conte - gritou depois, lutando para não entrecortar a
voz.

- Conte a longa história.

Alby olhou de relance para os amigos mais próximos e rolou os
olhos para o alto. Thomas examinou o grupo outra vez. Quase acertara na
primeira estimativa - devia haver, provavelmente, uns cinquenta a sessenta
deles, variando de garotos entrando na adolescência a jovens adultos, como
Alby, que parecia ser um dos mais velhos. Naquele instante, com um frio na
barriga, Thomas percebeu que não fazia a menor ideia de quantos anos ele
próprio tinha. Sentiu um aperto no coração ao pensar nisso - estava tão
perdido que nem sequer se lembrava da própria idade.

- Falando sério – insistiu, abandonando a pose de valente. - Onde é
que eu estou?

Alby aproximou-se e sentou, cruzando as pernas; o bando de
garotos o acompanhou e se aglomerou atrás. As cabeças se destacavam aqui
e ali, os garotos inclinando-se em todas as direções para enxergar melhor.

- Se não estiver com medo - falou Alby, então não é humano. Aja
de maneira diferente e vou atirá-lo do precipício, porque isso significaria
que é um louco.

- precipício? - repetiu Thomas, o sangue fugindo-lhe da face.

- Shank (trolha) - disse Alby, esfregando os olhos. - Agora não dá
pra gente conversar sobre isso, está entendendo?

Não matamos shank (trolhas) como você aqui, eu garanto. Só tente
evitar ser morto, dê um jeito de sobreviver, sei lá.
Ele fez uma pausa e Thomas concluiu que o seu rosto devia ter
empalidecido ainda mais ao ouvir a última parte.

- Cara - recomeçou Alby, depois passando as mãos pelo cabelo
curto e soltando um longo suspiro. - Não sou muito bom pra essas coisas...
você é o primeiro Novato(Greenbean) desde que Nick foi assassinado.

Thomas arregalou os olhos enquanto outro jovem se aproximou e
deu um tapinha de brincadeira na cabeça de Alby.

- Espere pelo maldito Passeio, Alby – sugeriu ele, a voz grossa com
um sotaque estranho. - O garoto vai ter um ataque do coração, e nem ouviu
toda a história ainda. - Ele inclinou-se e estendeu a mão para Thomas. -
Meu nome é Newt, Fedelho, e seria bem legal pra todo mundo se
desculpasse o nosso novo líder “tenho-uma-merda-no-cérebro” aqui.
Thomas estendeu a mão e apertou a do rapaz - ele parecia muito
mais amigável do que Alby. Newt era mais alto do que Alby também, mas
devia ser cerca de um ano mais novo. Seu cabelo era louro e comprido,
caindo em ondas sobre a camiseta. As veias se dilatavam nos braços
musculosos.
- Engula essa língua, cara de mértila(shuck-face (Cara de mértila) -
grunhiu Alby, puxando Newt para sentar-se ao seu lado. - Pelo menos ele
consegue entender metade das minhas palavras. - Ouviram-se risinhos
esparsos. Depois todos se juntaram atrás de Alby e Newt para ouvir o que
eles estavam dizendo, diminuindo ainda mais o espaço.
Alby abriu os braços com as mãos espalmadas para o alto.
- Este lugar se chama clareira, certo?
É onde moramos, onde comemos, onde dormimos... chamamos a
nós mesmos de os Habitantes da clareira. Isso é tudo o que você...
- Quem me mandou para cá? - Thomas o interrompeu, o medo
cedendo à raiva. - Como...?
Mas Alby era mais rápido e, antes que Thomas pudesse terminar,
agarrou-o pela gola à medida que se inclinava para a frente, apoiado sobre
os joelhos.
- Levante-se, shank (trolha), levante-se!
- Alby ficou de pé, levando Thomas consigo.
Thomas finalmente conseguiu se levantar, de novo totalmente
assustado.
Encostou-se na árvore, tentando livrar-se de Alby, mas ele
permaneceu na sua frente.
- Sem interrupções, garoto - bradou. - Seu mocorongo, se eu lhe
contasse tudo, você morreria de medo, bem depois de se cagar nas calças.
Os Embaladores(Baggers) o levariam e você não serviria mais de
nada pra gente!
- Eu nem sei do que você está falando - respondeu Thomas
devagar, impressionado ao perceber como sua voz soava serena.
Newt estendeu os braços e segurou Alby pelos ombros.
- Alby, pega leve. Está mais o assustando do que ajudando, sabia?
Alby soltou a gola de Thomas e deu um passo para trás, o peito
arfando, a respiração tensa.
- Não tenho tempo para ser legal, Novato. A vida anterior acabou,
uma nova começa. Aprenda logo as regras, ouça, não fale. Está me
entendendo?
Thomas olhou para Newt, buscando ajuda. Tudo dentro dele se
remexia e doía; as lágrimas, querendo brotar, faziam os olhos arder.
Newt acenou com a cabeça.
- Greenie (Fedelho), você entendeu o que ele disse, certo? -
Acenou de novo.
Thomas fungou, querendo esmurrar alguém. Mas simplesmente
cedeu.
- Entendi.
- Bom isso - admitiu Alby. - Primeiro Dia. Isso é o que hoje é para
você, shank (trolha). A noite está chegando, os runners (corredores)
voltarão logo.
A caixa veio tarde hoje, não temos tempo para o Passeio. Amanhã
de manhã, logo depois de acordar... - Ele se virou para Newt. - Arranje
uma cama para ele, faça com que durma.
- Bom isso - concordou Newt.
Alby olhou mais uma vez para Thomas, os olhos semicerrados.
- Em poucas semanas, você estará feliz, shank (trolha). Estará feliz
e ajudando.
Nenhum de nós tinha noção de nada no primeiro dia, assim como
você. A nova vida começa amanhã.
Alby voltou-se e abriu caminho pelo meio do grupinho, depois se
encaminhou para a decadente construção de madeira no canto. A maioria
dos garotos se dispersou, cada um lançando a Thomas um olhar demorado
antes de se afastar.
Thomas cruzou os braços, fechou os olhos e respirou fundo. O
vazio que tomara conta do seu ser rapidamente era substituído por uma
tristeza aguda. Aquilo era demais – onde estava? Que lugar era aquele?
Seria algum tipo de prisão? Nesse caso, por que fora mandado para lá, e por
quanto tempo? Os garotos falavam de um jeito estranho, e nenhum deles
parecia se importar se ia viver ou morrer. Outra vez, as lágrimas ameaçaram
encher-lhe os olhos, mas ele se recusou a deixar que viessem.
- O que foi que eu fiz? - sussurrou, ainda que suas palavras não se
dirigissem a ninguém. - O que foi que eu fiz... por que me mandaram para
cá?
Newt deu-lhe um tapinha no ombro.
- Greenie (Fedelho), isso que está sentindo todos nós já sentimos.
Todos tivemos o primeiro dia, ao sair daquela caixa escura. As
coisas são ruins, são mesmo, e ficarão muito piores para você em breve, essa
é a verdade. Mas, depois de algum tempo, vai se sentir mais conformado e
satisfeito. Posso garantir que você não é um maldito maricas.
- Isto aqui é uma prisão? - quis saber Thomas; vasculhou na
escuridão dos seus pensamentos, procurando uma falha cometida no
passado.
- Já terminou com as perguntas? - replicou Newt. - De qualquer
maneira, as respostas não são boas para você, ainda não. O melhor é se
acalmar agora, aceitar a transformação... Amanhã vai ser outro dia.
Thomas não disse nada, baixou a cabeça, os olhos pregados no chão
rochoso, rachado. Uma fileira de ervas de folhas miúdas corria pela borda
de um dos blocos de pedra, com florzinhas amarelas abertas como se
buscassem o sol que há muito desaparecera atrás dos muros enormes da
clareira.
- O Chuck vai ser bom para você - disse Newt. - Ele é um shank
(trolha) pequeno e um pouco gordo, mas no fundo é um cara legal. Espere
aqui, volto logo.
Newt mal acabara de falar quando um grito lancinante atravessou o
ar de repente. Sonoro e arrepiante, um gemido que mal parecia humano
ecoou pelo pátio de pedras; todos os garotos em seu campo de visão
voltaram-se para olhar na direção de onde partira. Thomas sentiu o sangue
gelar nas veias ao perceber que o som horrível viera da construção de
madeira.
Até mesmo Newt parara assustado, a testa franzida de apreensão.
- Inferno - disse ele. - Será que os malditos Socorristas não
conseguem controlar aquele garoto por dez minutos sem a minha ajuda?
- Abanou a cabeça e deu um chutinho no pé de Thomas. -
Encontre o Chuck, diga que ele está incumbido de arranjar um lugar para
você dormir. - Então voltou-se e saiu correndo rumo à construção.
Thomas escorregou de encontro ao tronco rugoso da árvore até
senta-se novamente no chão. Encolheu-se, apoiando as costas contra a
madeira.
Fechou os olhos, só querendo acordar daquele pesadelo horrível.

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