16:39 da tarde
Eu tenho uma bela multidão agora. Vovó e vovô. Tio Greg. Tia Diane. Tia Kate.
Meus primos Heather e John e David. Papai é um de cinco filhos, então ainda
tem muitos parentes por ai. Ninguém está falando sobre Teddy, o que me leva a
acreditar que ele não está aqui. Ele provavelmente ainda está no outro hospital,
sendo cuidado por Willow.
Os parentes estão reunidos na ala de espera. Não a pequena no andar
cirúrgico onde vovó e vovô estiveram durante minha cirurgia, mas uma maior
no andar principal do hospital que é decorado de bem gosto em tons de malva,
e tem cadeiras confortáveis e sofás e revistas que são quase atuais. Todos
conversam em tom baixo, como se estivessem respeitando as outras pessoas
esperando, embora esteja apenas minha família ali. Tudo é tão sério, tão
sinistro. Eu volto para o corredor para fazer uma pausa.
Fico tão feliz quando Kim chega; feliz por ver a familiaridade do seu longo
cabelo negro em uma única trança. Ela usa a trança todo dia e sempre, até a
hora do almoço, os cachos do seu grosso cabelo deram um jeito de escapar em
mexas rebeldes. Mas ela se recusa a se render aquele cabelo dela, e toda
manhã, ela volta a usar trança.
A mãe de Kim está com ela. Ela não deixa Kim dirigir por longas distancias, e
eu suponho que depois do que aconteceu, de jeito nenhum ela faria uma
exceção hoje. Sra. Schein está com o rosto vermelho e manchado, como se ela
estivesse chorando ou prestes a chorar. Eu sei disso porque a vi chorar muitas
vezes. Ela é muito emocional. “Rainha do drama,” é como Kim coloca. “É o gene
de mãe judia. Ela não consegue evitar. Eu suponho que eu vou ser assim um dia
também,” Kim diz.
Kim é tão o oposto disso, tão engraçada de um jeito discreto que ela
sempre tem que dizer “só brincando” para as pessoas que não entendem seu
senso de humor sarcástico, que eu não consigo imaginar ela sendo como sua
mãe. Mas de novo, não tenho muita base para comparar. Não tem muitas mãos
judias na nossa cidade ou muitos garotos judeus em nossa escola. E os que são
judeus são normalmente apenas em parte, então tudo que isso significa é que
eles colocam um menorah junto com suas arvores de natal.
Mas Kim é realmente judia. As vezes eu tenho jantares sexta a noite com a
família dela quando eles acendem velas, comem pão trançado, e bebem vinho
(a única hora que eu imagino que a neurótica Sra. Schein permite que Kim
beba). Se espera que Kim namore apenas caras judeus, o que significa que ela
não namora. Ela brinca que essa é a razão de sua família ter se mudado para cá,
quando na verdade é porque o pai dela foi contratado para fazer um chip de
computador. Quando ela tinha 13 anos, ela fez um bat mitzvah em um templo
em Portland, e durante a cerimônia de acender velas na recepção, eu fui
chamada para acender uma. Todo verão, ela vai para o acampamento de judeus
em New Jersey. Se chama Acampamento Torah Habonim, mas Kim chama de
Torah Whore,* porque tudo que os garotos fazem o verão todo é ficar.
“Como no acampamento de bandas,” ela brinca, embora o meu verão no
programa de conservatório não seja em nada parecido com American Pie.
Agora eu posso ver que Kim está irritada. Ela está andando rapidamente,
mantendo uma boa distancia entre ela e sua mãe enquanto marcham pelos
corredores. De repente seus ombros se erguem como um gato que acabou de
ver um cachorro. Ela vira para enfrentar sua mãe.
“Pare!” Kim exige. “Se eu não estou chorando, de jeito fudido nenhum você
pode.”
Kim nunca fala palavrão. Então isso me choca.
“Mas,” a Sra. Schein protesta, “como você pode ser tão...” – choro – “tão
calma quando – “
“Pare com isso!” Kim diz. “Mia ainda está aqui. Então não vou perder o
controle. E se eu não perder, então você também não pode!”
Kim anda em direção a sala de espera, sua mãe seguindo ela atrás. Quando
eles alcançam a sala de espera e vêem minha família reunida, Sra. Schein
começa a fungar.
Kim não xinga dessa vez. Mas suas orelhas ficam rosa, que é como sei que
ela ainda está furiosa. “Mãe. Vou deixar você aqui. Vou dar uma volta. Volto
mais tarde.”
Eu sigo ela de volta para o corredor. Ela perambula pelo lobby principal,
passa pela loja de presentes, visita a lancheria. Ela olha para o diretório do
hospital. Eu acho que eu sei onde ela está indo antes dela ir.
Tem uma pequena capela no porão. Está apertada ali, quieta como uma
biblioteca. Tem cadeiras estofadas como as do cinema, e uma trilha sonora
baixa está tocando como um tipo de música New Agey.
Kim se balança na cadeira. Ela tira seu casaco, que é preto e de veludo e que
eu tenho invejado desde que ela o comprou em um shopping em New Jersey
em uma viagem para visitar seus avós.
“Eu amo Oregon,” ela diz em uma tentativa soluçante de rir. Eu percebo pelo
tom sarcástico dela que ela está falando comigo, não com Deus. “Essa é a ideia
do hospital de não denominação.” Ela aponta pela capela. Tem um crucifixo na
parede, uma bandeira em um púlpito e um quadro da virgem Maria e seu Filho
nos fundos. “Temos uma estrela de Davi,’ ela diz, gesticulando para a estrela de
seis pontas na parede. “Mas e quanto aos mulçumanos? Nenhum tapete de
reza ou símbolo para mostrar qual é o leste em direção ao Mecca? E quanto aos
budistas? Eles não podiam ter um sino? Quer dizer, provavelmente tem mais
budistas do que judeus em Portland mesmo.”
Eu estou sentada numa cadeira ao lado dela. Parece tão natural o jeito que
Kim está falando comigo como ela sempre faz. Fora a paramédica que me disse
pra agüentar firme e a enfermeira que fica me perguntando como estou indo,
ninguém falou comigo desde o acidente. Eles falam sobre mim.
Eu nunca vi Kim rezar. Eu quero dizer, ela rezou no seu bat mitzvah e ela faz
a benção de Shabbat no jantar, mas isso é porque ela precisa. Na maior parte,
ela lida levianamente com sua religão. Mas depois que ela fala comigo por um
tempo, ela fecha seus olhos e move seus lábios murmurando coisas em uma
linguagem que eu não entendo.
Ela abre seus olhos e esfrega as mãos como se estivesse dizendo chega
disso. Então ela reconsidera e acrescenta uma ultima coisa. “Por favor não
morra. Eu posso entender o porque de você querer, mas pense nisso: se você
morrer, vai haver aqueles memórias toscos estilo Princesa Diana na escola, onde
todos colocam flores e velas e notas perto do seu armário.” Ela limpa uma
lagrima renegada com as costas da mão. “Eu sei que você odeia esse tipo de
coisa.”
Talvez fosse porque somos muito parecidas. Assim que Kim apareceu em cena,
todos assumiram que éramos melhores amigas porque nós duas éramos
silenciosas, estudiosas, e, pelo menos para os outros, sérias. O négocio é,
nenhuma de nós era particularmente uma ótima estudante (Notas B direto) ou,
para falar a verdade, tão sérias. Nós éramos sérias sobre certas coisas – música
no meu caso, arte e fotografia no dela – e no mundo simples do ensino
fundamental, isso era o bastante para nos tomar como gêmeas de algum tipo.
Imediatamente fomos colocadas juntas para tudo. No terceiro dia de aula de
Kim, ela foi a única pessoa a se voluntariar para ser capitão do time durante
uma partida de futebol em Educação Física, o que eu achei que era além do
puxa saquismo dela. Enquanto ela colocava seu casaco vermelho, o técnico
avaliou a turma para escolher o capitão do time B, seus olhos parando em mim,
embora eu fosse a menos atlética das garotas. Enquanto eu colocava meu
casaco, eu passei por Kim, murmurando “muito obrigado.”
Na semana seguinte, nosso professor de inglês nos colocou em duplas para
uma discussão oral sobre To Kill a Mochingbird. Sentamos na frente uma da
outro em um silencio pesado por cerca de 10 minutos. Finalmente, eu disse, “Eu
acho que deveríamos falar sobre racismo no Antigo Sul, ou algo assim.”
Kim virou olhos, o que me fez querer jogar um dicionário nela. Eu fui pega de
guarda baixa por o quão intensamente eu já a odiava. “Eu li esse livro na minha
antiga escola,” ela disse. “O negócio do racismo é meio obvio. Eu acho que a
maior coisa é a bondade das pessoas. Elas são naturalmente boas e se tornam
más por coisas como racismo ou eles são naturalmente ruins e precisam
trabalhar muito para não ser?”
“Tanto faz,” eu disse. “É um livro idiota.” Eu não sabia porque havia dito isso
porque na verdade eu amei o livro e tinha conversado com papai sobre ele; ele
está usando ele para ensinar seus alunos. Eu odiei Kim ainda mais por me fazer
trair o livro que eu amava.
“Tudo bem. Vamos fazer sua ideia então,” Kim disse, e quando recebemos
um B-, ela pareceu brilhar com nossa nota medíocre.
Depois disso, simplesmente não conversamos. Isso não impediu os
professores de nos colocar juntas ou de todos na escola assumirem que éramos
amigas. Quanto mais isso acontecia, mas resistíamos – uma a outra. Quanto
mais o mundo nos unia, mais nos empurrávamos para longe – e uma contra a
outra. Tentamos fingir que a outra não existia embora a existência de nossa
inimiga nos mantivesse ocupadas por horas.
Eu me senti compelida a me dar razões do porque eu odiava Kim: Ela não faz
nada errado. Ela é irritante. Ela é exibida. Mais tarde, descobri que ela fazia a
mesma coisa sobre mim, embora a maior reclamação dela era que ela achava
que eu era uma vaca. E um dia, ela até escreveu isso para mim. Na aula de
inglês, alguém lançou um pedaço de papel no chão perto do meu pé direito. Eu
o peguei e abri. Lia-se, Vaca!
Ninguém tinha me chamado disso antes, e embora tenha ficado
automaticamente furiosa, no fundo fiquei tão lisonjeada por ter trazido
emoções o bastante para ser digna desse nome. As pessoas chamam mamãe
disso bastante, provavelmente porque ela tem dificuldade de segurar a língua e
poderia ser brutalmente sincera quando descorda de você. De qualquer forma,
ela não se importava que as pessoas chamassem ela de vaca. “Só outra palavra
para feminista,” ela me disse com orgulho.Até papai chamava ela disso as vezes,
mas sempre brincando, de um jeito elogioso. Nunca durante uma briga. Ele
sabia melhor.
Eu olhei para cima do meu livro de gramática. Só havia uma pessoa que
podia ter mandado o bilhete para mim, mas eu ainda não acreditava. Eu olhei
para a turma. Todos estavam olhando seus livros. Com exceção de Kim. As
orelhas dela estavam tão vermelhas que faziam as mexas laterais de seu cabelo
negro parecer que também estavam corando. Ela estava me encarando. Eu
podia ter 11 anos e ser um pouco socialmente imatura, mas reconheço um
desafio sendo feito quando eu vejo, e eu não tinha escolha se não aceitar.
Quando ficamos mais velhas, gostávamos de brincar de que ficamos felizes
com nossa briga. Não apenas cimentou nossa amizade mas também nos
providenciou nossa primeira e provavelmente única oportunidade para uma
boa disputa. Onde mais duas garotas como nós vão brigar? Eu brigo no chão
com Teddy, e as vezes belisco ele, mas uma briga de socos? Ele era só um bebê,
e mesmo que fosse mais velho, Teddy era como metade irmão e metade meu
filho. Eu cuido dele desde que ele tinha apenas algumas semanas. Nunca
poderia machucar ele assim. E Kim, filha única, não tinha irmãos para socar.
Talvez no acampamento ela poderia se meter numa briga, mas as
conseqüências seriam ruins: seminários de horas sobre resolver conflitos com o
conselheiro e o rabino. “Minha gente sabe como lutar com seu melhor, mas
com palavras, com muitas, muitas palavras,” ela me disse uma vez.
Mas naquele dia, brigamos de soco. Depois do ultimo sino, sem uma
palavra, nos seguimos para o parquinho, soltamos nossas mochilas no chão, que
estava molhado do chuvisco firme daquele dia. Eu soquei ela na lateral da
cabeça, punho fechado, como os homens fazem. Uma multidão de garotos se
reunião para assistir o espetáculo. Uma briga era novidade na nossa escola.
Garotas lutando era extra especial. E boas garotas fazendo isso era perfeito.
Quando os professores nos separaram, metade da sexta série estava nos
vendo (na verdade, foi o amontoado de estudantes que alertou os monitores
que algo estava acontecendo). A briga foi um empate, eu suponho. Eu tinha um
lábio cortado e um pulso machucado, que eu tinha infringido a mim mesma
quando tentei acertar o ombro de Kim, errei, e bati no poste da rede de vôlei.
Kim tinha um olho inchado e um arranhão feio no quadril como resultado dela
ter tropeçado na sua mochila numa tentativa de me chutar.
Não fizemos as pazes sinceramente, nem nenhum aperto de mão oficial.
Assim que os professores nos separaram, Kim e eu olhamos uma para a outra e
começamos a rir. Depois de fazer uma visita para o diretor, mancamos para
casa. Kim me disse que a única razão para ela ter se voluntariado para ser capitã
de um time era porque se ela fizesse isso no começo do ano escolar, os técnicos
tendem a lembrar e isso faz com que eles não te escolham no futuro (um truque
que eu aprendi dali em diante). Eu expliquei para ela que eu concordei com ela
no trabalho do To Kill a Mochinbird, que era um dos meus livros favoritos. E foi
isso. Eramos amigas, assim como todo mundo assumiu o tempo inteiro que
seriamos. Nunca mais colocamos a mão uma na outra, e embora tenhamos nos
xingado bastante, nossos ataques tendem a acabar do jeito que nossa briga
acabou, com a gente rindo.
Mas depois da nossa briga, a Sra. Schein se recusou a deixar Mia vir para
minha casa, convencida que sua filha iria voltar machucada. Mamãe se ofereceu
para ir lá e resolver as coisas, mas eu acho que papai e eu percebemos que
graças ao temperamento dela, sua missão diplomática podia terminar com uma
medida cautelar contra nossa família. No fim, papai convidou os Scheins para
um frango assado, e embora pudéssemos ver que a Sra. Schein ainda estava um
pouco desconfiada com nossa família – “então você trabalha numa loja de
discos enquanto estuda para se tornar professor? E você cozinha? Que
estranho,” – ela disse para papai – Sr. Schein declarou meus pais decentes o
bastante e nossa família não violenta e disse a mãe de Kim que Kim podia ir e vir
quando quisesse.
Por aqueles meses na sexta série, Kim e eu começamos a formar nossas
personalidades. Rumores sobre nossa briga circularam, os detalhes se tornando
mais exagerados – costelas quebradas, unhas quebradas, mordidas. Mas
quando voltamos para a escola depois das férias de inverno, tudo foi esquecido.
Voltamos a ser as gêmeas boas e quietas.
Não nos importávamos mais. Na verdade, conforme os anos passavam essa
reputação nos serviu bem. Se, por exemplo, as duas ficamos ausentes no
mesmo dia, as pessoas automaticamente assumiam que tínhamos ficado
doentes da mesma coisa, não que matamos aula para ver filmes de arte sendo
mostrados numa turma na universidade. Quando, por brincadeira, alguém
colocou nossa escola a venda, cobrindo ela com placas e anúncios no eBay²,
olhos suspeitos se viraram para Nelson Baker e Jenna McLaughlin, não nós.
Mesmo que tivéssemos confessado a brincadeira – como planejamos se mais
alguém se metesse em problemas – teríamos dificuldades em convencer alguém
que foi realmente nós.
Isso sempre fazia Kim rir. “As pessoas acreditam no que querem acreditar,”
ela disse.
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