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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

A mente humana é uma merda



Eram 7h. Os passarinhos cantavam próximos da minha janela no
pequeno quarto que dividia com meu irmão. Meus olhos estavam abertos, mas
não havia sido diferente ao longo da noite. Mantendo meu hábito de só dormir de
manhã, aquele dia não havia fugido à regra. Só percebi o quanto estava ferrado
quando o despertador começou a tocar.
Levantei, após ter passado duas horas tentando inutilmente tirar um cochilo, e
encaminhei-me até o banheiro, pulando por cima da cama do meu irmão (sim,
dividíamos uma daquelas camas duplas cuja segunda sai de uma espécie de
gaveta).
Por mais que não tivesse dormido, a rotina após o ato de acordar deveria se
manter a mesma. Os antigos hábitos ensinados por toda mamãe: lavar o rosto pra
tirar a remeleira, escovar os dentes pra tirar o bafo de paçoca e o xixi sentado,
porque com sono é difícil acertar o alvo.
Era sábado, mas, ao contrário da maioria que descansa nesse que é o melhor
dia da semana, eu estava levantando, sem ter dormido, para passar o fim de
semana em São Paulo. A razão disso era uma maratona de entrevistas e reuniões
que poderiam definir meu futuro.
Encarei o espelho por minutos, tentando enxergar que tipo de pessoa eu
realmente era. A verdade é que não via nenhuma. Uma confusão dominava meu
cérebro. Entre dúvidas e incompreensões, estava tendo dificuldades de encontrar
minha própria personalidade. Cada vez mais tentava ser o que as pessoas
esperavam que eu fosse e, ainda cada vez mais, distanciava-me do que eu
realmente era e ficava fora dos trilhos com relação à carreira que estabelecera. O
objetivo de atuar ficava no trilho da direita, enquanto aquele em que eu me
posicionava era um trilho que acabava numa parede de concreto: o de um cara
que só tinha uma coisa a oferecer, críticas.
– Quem é você? – perguntei ao espelho em inglês. Por mais que pareça insano,
eu possuo o estranho hábito de conversar com o espelho em outra língua,
puramente para praticar (e também porque parece que, quando fazemos isso,
estamos num filme hollywoodiano).
– O que está fazendo?
O espelho nunca me responde.
– Calma. Respira.
A verdade é que há alguns dias eu vinha sofrendo de momentos de taquicardia
(coração muito acelerado). Do nada, mesmo estando totalmente calmo, como, por
exemplo, assistindo a um seriado, minha respiração ficava difícil e meu coração
disparava. Numa conversa particular com meu pai ao telefone, no dia anterior, a
razão disso havia sido encontrada.
– Felipe, você está ansioso – simplificou ele.
– Porra, mas por quê? Eu estou feliz, as coisas estão dando certo, estou
ganhando dinheiro. Não tem razão alguma para me sentir ansioso.
– Ô, meu amigo, se dinheiro e fama fossem suficientes pra deixar alguém
tranquilo, você não veria tanto artista famoso afundado em drogas.
Ele tinha razão. Eu poderia estar crescendo em questão de sucesso, ganhando
dinheiro, mas a realidade era pura e simples: eu não estava feliz. Nada parecia
preencher um vazio desesperador: o medo do futuro. Medo de acontecer comigo
o que já acontecera tantas vezes antes com outros artistas. Onde estava Guilherme
Zaiden? Onde estão tantos atores que passaram por Malhação e ninguém sequer
se lembra mais? Nada poderia garantir que eu iria me estabelecer.
– Seus ataques de taquicardia são sintomas de ansiedade e insegurança. Você
tem medo ao mesmo tempo em que ama o que está acontecendo, o que gera mais
medo ainda de perder tudo isso.
O velho sempre estava certo. Mesmo nos momentos mais desesperadores da
minha vida, meu pai estava lá com meia dúzia de palavras para fazer com que eu
enxergasse aspectos que a maioria não consegue: uma espécie de busca interna
pela autoanálise e a admissão de suas falhas e medos.
– E o que eu faço? – perguntei, sabendo que ele teria pelo menos uma direção
para me dar.
– Bom, muitos que se encontram nessa situação em que você está agora
preferem o caminho das drogas. O que você tem a fazer é encarar isso de frente,
estufar o peito e tentar derrubar os conflitos internos que você tem. Se eu posso te
dar um conselho agora, é este: tente viver o presente, você ainda é um menino,
está começando a fazer sucesso e quanto mais você ficar se atormentando com o
futuro, menos você vai conseguir realizar as coisas, porque vai ficar com medo,
vai ficar travado.
Eu estava certo, ele sabia a direção certa.
Enxergar-me como menino sempre foi meu grande problema. Desde a época
do colégio me considerei muito à frente dos amiguinhos de turma. Nunca andei
com pessoas da minha idade e sempre procurei relações com mulheres mais
velhas. A verdade é que eu havia sido forçado a amadurecer mais cedo que o
normal. Com 15 anos, eu já estava com emprego fixo como designer gráfico. Aos
17, já dava aulas em um curso no Rio de Janeiro para iniciantes em design e no
programa Adobe Flash (na época era Macromedia, ah, que saudade). As
dificuldades financeiras e a vontade de obter destaque haviam resultado num
amadurecimento precoce, que possuía aspectos tanto maravilhosos quanto
péssimos: o excesso de preciosismo, uma autocrítica estupidamente
desproporcional e o pensamento de que eu nunca poderia fazer coisas imaturas ou
parecer apenas um garoto playboy que conquistara as coisas com facilidade.
Tudo isso passou pela minha cabeça enquanto ainda encarava o espelho do
banheiro, ao mesmo tempo em que ouvia minha avó levantar e começar a
preparar o café.
Desliguei a torneira, percebendo quanta água havia desperdiçado nesses
tempos de aquecimento global, e encaminhei-me à cozinha.
– Ui, já estás de pé? – perguntou Dona Maria, a portuguesa mais fofa do
mundo.
– Já, vó, esqueceu que eu viajo hoje?
– Ah, sim. Queres café?
– Vê meio litro.
O café sempre foi e sempre será meu fiel escudeiro. Em outras palavras, o café
é o meu Sancho Pança, ou como prefiro chamá-lo, meu negro gostoso. Só que
Sancho Pança é menos gay.
– E pra onde é que vais? – perguntou minha avó ao mesmo tempo em que
servia o café num balde à minha frente.
– São Paulo, mas eu volto amanhã. É rapidinho, só vou fazer umas entrevistas.
– Por alguma razão, eu não dissera pra minha família sobre minha grande
reunião, aquela que poderia garantir meu ano inteiro e o próximo.
– É pra TV?
– Uma é pra rádio, vó, no programa Pânico – comecei enquanto bebia o café
quente e queimava a garganta, como sempre. – A outra é pela internet, pra um
site chamado Vírgula. E a outra é pra TV, sim, na MTV.
– Me viste onde?
– Não, vó, “eme tí ví” é um canal de televisão.
– É na Globo?
– Não, vó, é na MTV.
– Não estou a entender nada do que tu dizes.
Bati com a cabeça no tampo da mesa.
– É, na Globo, vó. Depois eu te mostro. Vai passar de madrugada. –
Obviamente não era na Globo, mas no programa Notícia MTV, do Cazé. O
problema era explicar pra velhinha que existia um canal chamado MTV. Planejei
mostrar depois no computador, que, por sinal, pra ela é “tipo uma televisão que
você escreve”.
Conversamos mais uns bons dez minutos, em que Dona Maria tentou de todas
as formas me mostrar que eu não deveria me enveredar por aí com mulheres “fora
de rumo”, mas, sim, encontrar uma boa moça pra casar. Sempre adorei as
conversas com a minha avó, de certa forma, é mais ou menos como descobrir que
ainda existe inocência e pureza no mundo.
– Vó, vou lá acordar o Alan.
Sim, o Alan havia dormido lá em casa. A verdade é que o momento pelo qual
eu estava passando era pior do que consegui traduzir em palavras. Não era apenas
a angústia e a ansiedade, mas algumas vezes sentia prestes a ter crises de pânico.
Certo dia, de madrugada, enquanto assistia a um inocente episódio de Friends,
comecei a ter a já citada taquicardia. O problema foi que, dessa vez, ela veio
acompanhada de outros sintomas. Comecei a suar frio e, de repente, fui envolvido
pelo medo, como se tudo ao meu redor fosse desmoronar a qualquer momento.
Fui obrigado a pausar o seriado e sair da cadeira quase engatinhando, numa
posição humilhante. Recolhi-me no canto do quarto, em posição quase fetal,
abraçando os joelhos, e comecei a conversar comigo mesmo.
Descobri que conversar consigo mesmo é um excelente remédio para
momentos de incompreensão. Muitas vezes, o simples fato de você colocar pra
fora, através de palavras, aquilo que está sentindo, serve para que seu cérebro
comece a ordenar as coisas. Naquele momento, desabafei sobre meus medos,
sobre o que poderia estar me deixando apavorado, e o resultado foi imediato. Em
poucos minutos comecei a chorar, mas, logo em seguida, a respiração voltou ao
normal e a angústia passou. O que ficou foi mais um medo: o de enlouquecer de
vez.Daquele momento em diante decidi que iria ter companhia sempre que
possível, principalmente em viagens. O que nos remete ao momento em que
paramos essa narrativa, eu no quarto do terraço acordando o Alan.
E o maldito estava pelado.
– Ô, viado. – Desculpe o linguajar, mas as pessoas falam assim (ou falavam, se
for 2020). – Dá pra tu acordar e botar uma roupa? Já estamos atrasados.
Quando se mora perto do Buraco do Padre, você está sempre atrasado. O
Engenho Novo não é um lugar bom para se viver quando você precisa ir para
outros lugares, pois você irá gastar um tempo considerável pra tudo,
principalmente se for alguém sem carro, como era o meu caso.
Arrumamos as malas. Ou melhor, mochilas. Homem que viaja de mala pra
passar um fim de semana ou está carregando a maquiagem pro show de
transformista depois da meia-noite, ou... Não consegui pensar em outra
alternativa.
A essa altura, Dona Rosa também já havia levantado pra nos dar um beijo de
despedida, assim como Dona Maria. Já Luccas, meu irmão, roncava o suficiente
pra interpretarmos como um “tchau”. Colocamos nossas mochilas nas costas e
pegamos a rua de paralelepípedo com destino ao aeroporto.
Tic. Tac. Tic. Tac.
Chegamos em São Paulo. E por “tic tac” leia-se “dormimos o voo inteiro”.
Fomos imediatamente para o hotel, onde descarregamos nossas coisas (uau,
quantas coisas) e sentamos, cada um em sua cama, para assistir a um pouco de
TV e conversar sobre a vida.
– Qual a primeira entrevista, cara? – perguntou Alan.
– Da MTV, no programa do Cazé, aquele Notícia MTV.
– Hum... É sobre o quê?
– É sobre mim, porra. – Incrível como primos são educados uns com os outros.
– Sim, animal, mas como é o programa?
– Normal, ele vai me fazer umas perguntas, eu vou ficar nervoso, gaguejar, ele
vai ficar puto porque não sou rebelde e vai ser um desastre como as outras.
Eu já suava frio quando percebi que faltavam duas horas para me encaminhar
para a MTV. Só a sensação de que iria mais uma vez ser alvo de preconceito e
algumas alfinetadas desnecessárias já despertara meu nervosismo pleno. Daí, a
brilhante ideia:
– Alan, vou colocar uma música.
“Beautiful girl, all over the world... I could be furfles but my time bulibaba... lá
lá lá lá on yoooouuu girl”
Começou assim, de leve, um Bruno Mars calminho, só pra dar uma relaxada,
mas sem carícias homossexuais (quando se trata de música, sou fã desde o trash e
metal até a música mais gay possível, tipo, sei lá, Rihanna, que eu realmente curto
muito).
A música rolava solta e eu me inclinava pra trás na cadeira, permitindo que as
ondas sonoras me acalmassem. Fiquei assim por pelo menos vinte minutos.
Bem, você já deve ter visto o filme Será que ele é?, com o brilhante Kevin
Kline. Se não viu, saiba que há uma fatídica cena em que o personagem, no
desespero de tentar descobrir se ele era homossexual ou não, faz um teste ao som
de “I Will Survive”, no qual ele não poderia dançar. Obviamente, ele dança que
nem uma bailarina escocesa com comichão na virilha. Muito embora eu não faça
ideia se uma bailarina escocesa seria tão gay, era exatamente essa a situação na
qual eu me encontrava após meia hora de música.
Outro parêntese em forma de parágrafo aqui, eu jamais teria passado no teste
musical do Será que ele é?.
O fato é que fiquei pelo menos uma hora naquele estado pleno de ouvir a
música, pular, dançar, subir na cama, puxar meu primo e fazer ele dançar junto (o
que ele fez de muito bom grado, por sinal), gritar, cantar, bater nas paredes,
quicar como uma gazela com cãibra e, quando terminamos, a tensão terminou
junto com as batidas da última música.
Se um dia você estiver sob forte pressão, faça como eu: vire uma galinha.
Enfim, saímos do hotel.
A primeira entrevista, com o Cazé, foi tranquila. A música foi determinante
para que eu chegasse num estado de paz maior do que normalmente vinha
sentindo. Muito embora tenha caído nas velhas perguntas e provocações, como
no determinado momento em que, ao ser perguntado sobre o Fiuk, respondi de
forma calma e ele rebateu com um “não vai dar pra trás agora!”, acredito que
tenha me saído bem, devidas as circunstâncias. As risadinhas nervosas estavam
presentes, bem como a tentativa imbecil de tentar agradar o entrevistador, sendo
exageradamente simpático (em todo esse turbilhão, eu tinha espasmos de simpatia
e também agressividade, não conseguindo exatamente me equilibrar na própria
personalidade).
Talvez o fato de ter me saído bem tenha sido fundamental para o que veio a
acontecer no dia seguinte. Com a guarda baixa, nervoso, ansioso e sem preparo
psicológico, fui para a Jovem Pan acreditando que agora tinha encontrado o
caminho certo de como agir em entrevistas. O problema foi que não era mais o
Cazé quem iria me entrevistar, com seu carisma e simplicidade. Era a galera do
Pânico na rádio.
O resultado foi desastroso, o que não tenho vergonha alguma de admitir. Fui
massacrado, pisoteado por um turbilhão de perguntas e provocações agressivas,
as quais não estava preparado para receber ao vivo. Vendo-me naquela situação
constrangedora, tentei ser o bom moço que sempre fui, apelei pra simpatia e tomei
nas nádegas sem lubrificante. Para se ter ideia, a situação chegou ao ponto de um
dos integrantes dizer: “Você não sabe ouvir críticas, você está chorando, estou
vendo uma lágrima aí.” Sim, estilo quinta série.
O desastre do Pânico, contudo, foi fundamental para que eu percebesse a
seriedade da situação. Eu estava de fato num covil de cobras, cercado por pessoas
que adorariam me ver cair... E eu estava sendo legal demais, simpático demais,
excessivamente carinhoso. Sim, era mais próximo do “Felipe” da vida real, mas
não servia para esse meio. Eu precisava de fato encontrar minha personalidade e
encaixar um pouco da acidez que me levara às entrevistas. Caso contrário, seria
um Pânico atrás do outro.
Saí de lá sem me sentir cabisbaixo. Adriana, minha empresária, disse as
palavras que eu já estava pensando: “Vamos usar essa entrevista e aprender com
ela, tirar o aprendizado, o lado positivo.” Eu saí de lá menos moleque nesse meio,
levantei a cabeça e vi que ou eu mostrava um pouco das garras, ou seria
esmagado. Entendi. Apanhei, mas entendi. Por isso, deixo meu agradecimento
especial ao pessoal do Pânico, seus fofuxos.
***
Bem, você provavelmente se lembra do último acontecimento dessa minha ida
a São Paulo: a tal reunião que poderia mudar minha vida. Pois bem, foi pra lá que
me dirigi imediatamente após a catástrofe paniquífica (para de dizer que a palavra
está errada, Word, eu realmente quero escrever “paniquífica”, dá licença?).
Eu, Alan e Adriana entramos num elegante e gigantesco prédio comercial, cuja
porta de entrada já valia mais que todo o dinheiro que minha família ganhara.
A reunião era com um executivo. Um tal de Flávio Augusto, presidente da
Ometz Group, fundador do curso de inglês Wise Up. Enquanto subia o elevador
com a Adriana (o Alan teve que esperar na recepção) só pensava no quanto eu
provavelmente odiaria o Flávio.
Sempre tive problemas com executivos. Do alto de seus ternos alinhados, eles
sempre representaram várias coisas que sempre detestei: conservadorismo, falta
de criatividade artística, assassinato de quem tentava levar verdadeira arte para os
meios padrões (TV, por exemplo). Detestava tanto que havia criado uma camiseta
com a frase sensacional do seriado Entourage: “Fuck You Suits”, que é
impossível de traduzir, mas seria algo como “Fodam-se os executivos em seus
terninhos”. Bem, obviamente não estava vestindo essa camiseta quando entrei na
sala com a Adriana e apertei a mão do jovem rapaz que iria me apresentar ao
Flávio Augusto.
– E aí, Felipe. Tudo bom, rapaz?
– Opa, tudo ótimo, melhor impossível, né? Hehehe – menti.
– Então, a Adriana já conversou muito comigo sobre você. Temos muito em
comum. Eu cresci num bairro ao lado do seu, lá perto do Engenho Novo, sou
suburbano também.
Não dava pra entender a razão do cara estar falando tudo aquilo, então
respondi com aquilo que sempre respondemos quando não temos nada a dizer.
– Opa, bacana.
– Então, vamos conversar sobre você virar meu garoto-propaganda?
BUM! O cara ERA o Flávio Augusto.
Parado à minha frente estava um cidadão que eu jamais diria ter milhões em
sua conta e a responsabilidade de cuidar de um grupo avaliado em mais de 1
bilhão de dólares. Era só um adulto com cara de garoto, provavelmente lá pelos
seus 35 anos. Mas, enfim, quando ele começou a falar, comecei a compreender a
razão de seus milhões que chegaram tão rápido.
Flávio não era um “executivozinho” comum, do tipo que fala de cima pra
baixo com as pessoas e acha que sua bunda caga barras de ouro. Ele começou
com um longo, mas interessante, discurso sobre suas origens humildes, como as
minhas, e logo estava falando sobre o que o levou a montar um império. Em
apenas uma hora de papo (em que ele praticamente falou e eu escutei), descobri o
grande segredo para um negócio dar certo: investir em pessoas. Não que esse seja
o único segredo, mas é um dos que funcionam e, certamente, uma das
características que hoje diferenciam os bons dos maus executivos, na minha
concepção.
– Felipe, o que quero com você é muito mais que simplesmente te contratar
como garoto-propaganda e usufruir da sua imagem pra minha empresa – disse
ele. – O que eu quero é estabelecer uma ligação com você, investir em você,
ajudá-lo a crescer e a estabelecer um laço muito mais forte que simplesmente o de
um contrato com a Wise Up.
Ninguém havia me tratado daquela forma até então. O máximo que eu ouvia
de qualquer empresário era só o que eles passavam para a DNA. Nenhuma
empresa ou cliente estava afim de saber o que eu tinha pra falar, muito menos no
que eu poderia realmente dizer que funcionaria para suas campanhas, eles
queriam sugar cada espaço que conseguissem nos meus vídeos e simplesmente
me pagar por isso. Naquela reunião, contudo, descobri que era possível ser
empresário sem ser babaca.
Se você procurar pela história do Flávio, o que eu recomendo que faça, vai
descobrir que não é só de milionários cuzões que vem o poder. Existe gente
decente, preocupada com as pessoas e em fazer mais que uma empresa ganhar
dinheiro. E daquela reunião até o momento em que escrevo essas palavras, Flávio
se tornou uma das pessoas mais importantes na minha vida, não apenas
financeiramente (como ainda vou narrar nos próximos parágrafos), como também
servindo de guia, conselheiro, amigo e professor.
Pois bem, a essa altura ele já havia deixado muito claro pra mim que aquilo se
tratava muito mais que apenas assinar como o rostinho simpático que
representaria a marca Wise Up. Já conversávamos sobre o futuro, sobre meus
planos, sobre como eu poderia utilizar a influência que possuía para produzir
coisas boas, úteis, principalmente para os jovens. Contudo, obviamente, ainda
precisávamos acertar a questão do valor para que eu assinasse um contrato de um
ano representando a escola.
Mas dessa parte eu não poderia participar.
Saí da sala, para que a Adriana pudesse assumir as rédeas da reunião e
negociar o quanto eu valia para esse negócio. No mundo artístico, uma das piores
coisas para um artista fazer é ter que dizer o quanto ele vale. É nessa hora que
entra uma boa empresária, para te livrar do constrangedor momento em que você
diz: “Ok, eu valho 10 mil reais, tá afim?” E o que é pior, ter que ouvir em
resposta: “Cara, eu acho que você vale só 5, topa?” Ter alguém para fazer isso
por você é algo que realmente melhora muito a qualidade de vida.
Sentei no hall, aguardando ansiosamente o momento em que eu saberia o valor
daquilo que havia criado. Até aquele instante já havia conseguido aumentar
consideravelmente minha condição financeira com os ganhos do YouTube, mas
nada que pudesse fazer a diferença pra minha família. Por isso, aguardei,
imaginando.
Não tinha a menor ideia de quanto ganharia com aquele contrato. Até então eu
só tinha negociado algumas campanhas para o Não Faz Sentido, sendo que
nenhuma tinha dado certo. De coisas concretas eu só tinha o dinheiro do próprio
YouTube.
Cinquenta mil?, pensei, enquanto observava um lindíssimo quadro pendurado
na parede oposta que provavelmente valia mais que cinco meses de salário da
minha mãe.
Cinquenta mil seria um valor absurdo, acho que deve ser menos, por causa
do tempo de contrato, sei lá... Uns 35. Cara, se eu conseguir 30 mil já vai ser
algo fenomenal.
– Felipe, pode vir – disse Adriana da porta da sala de reuniões.
Levantei-me da cadeira e caminhei a passos pesados em direção à porta, com
um único pensamento: que seja 50, que seja 50!
Quando sentei, Flávio apenas esticou a mão e me cumprimentou.
– Seja bem-vindo à Wise Up, cara. Que esse seja o primeiro dia de muitos
anos – disse ele, com um sorriso no rosto.
Sorri. Aliás, gargalhei. A felicidade de assinar um bom contrato já era o
suficiente, mas mais que isso, eu sinceramente estava me unindo a uma pessoa e a
um grupo extraordinários.
– Muito obrigado, cara – respondi ao largar sua mão.
– A gente vai assinar com você por um ano. Depois de um ano, a gente estuda
a renovação do contrato e fecha um novo valor. Por esse primeiro ano, conversei
bastante com a Adriana e decidimos fechar por 160 mil, o que acha?
O sorriso saiu do meu rosto. Fiquei atônito por alguns segundos,
comemorando internamente o fato de que a Adriana começou a falar alguma
coisa, o que distraiu o Flávio e não permitiu que ele percebesse minha reação.
Não faço a menor ideia do que ela falou, porque, sinceramente, eu não estava
escutando mais nada.
Não sou o Zezé di Camargo. Não cresci numa plantação de tomate e nem
passei fome, mas minha família sempre se apertou para pagar as contas,
principalmente minha mãe, obrigada a trabalhar doze horas por dia numa creche
para sustentar os dois filhos. Na época da escola, não existia dinheiro para eu
poder comprar lanche no recreio, então ia a pé às vezes, caminhando meia hora,
pra economizar o dinheiro do ônibus e poder comer um joelho de queijo e
presunto. Quando veio a época de sair com os amigos, eu precisava escolher
entre ir ao McDonald’s ou pegar um cinema, porque os dois ao mesmo tempo
não cabia no meu orçamento de basicamente 15 reais. E isso só umas duas vezes
por mês.
Comecei a trabalhar cedo porque queria ir ao McDonald’s depois do cinema.
Queria poder tirar da minha mãe a despesa de reles 30 a 40 reais por mês que ela
tinha comigo pra isso, porque sabia que aquilo fazia diferença pra ela na hora de
pagar o cartão de crédito (que ela usava pra pagar o supermercado). Queria que
meu irmão tivesse um video game, que ele pôde ganhar finalmente só aos 16
anos, quando eu dei de Natal. Queria que minha mãe nunca mais precisasse se
preocupar com dinheiro, pudesse ter um carro decente (e não aquele sem arcondicionado
que já tinha havia dez anos).
E naquele momento eu assinava um contrato de 160 mil reais.
Não era só o dinheiro, não era a sensação de “oh, meu Deus, quanta grana,
vou poder comprar várias coisas”. Era a conquista, a superação, era saber que
daquele momento em diante eu estaria estável por um bom tempo e, a partir dali,
poderia obter conquistas ainda maiores, me dedicar ainda mais e poder garantir
não só o meu futuro, como o da minha família.
Mas eu não chorei, porque, apesar de ter medo de barata e ter feito
coreografias do Latino quando criança, aquele não era o momento pra aflorar
meu lado “caio no choro com comédia romântica” (sério).
– A Adriana me passou o valor e eu aceitei na hora – disse ele, interrompendo
meus devaneios. – Era mais do que eu havia imaginado que iria investir por agora
em você, mas acho que você vale ainda mais do que havia imaginado. Não vou
negociar, vou te dar exatamente aquilo que você vale agora.
Como eu disse, Flávio Augusto não é um executivo de merda como tantos que
vemos por aí. O cara tinha começado uma mudança na minha vida simplesmente
porque havia se permitido dizer “sim”, em vez de tentar economizar 100 mil que
não fariam grande diferença em seu bolso, mas, sim, no meu.
– Flávio, muito obrigado – disse. E repito agora.
Mas ainda havia um problema, que veio à tona na frase seguinte do presidente.
– Cara, além do Rodrigo Santoro, que já é nosso garoto-propaganda, a gente tá
pensando em contratar o Fiuk também. Tem problema?
Foi nesse momento que fiquei sabendo. Nesse instante, após tudo isso,
descobri que representaria algo juntamente a pessoa que a mídia havia taxado
como meu “inimigo”, bem como praticamente todo o meu público.
Respirei, pensei por alguns instantes.
– Você me contratou para representar a Wise Up e é isso que vou fazer. Se
você chamou o Fiuk, isso só significa que ele também vai representar a empresa.
Não sou eu que vou criar problemas com isso, muito menos pedir pra você
escolher um dos dois, até porque eu sairia perdendo nessa – respondi.
– E você faria um comercial com ele? – perguntou Flávio, quase me testando.
Olhei para a Adriana, que parecia igualmente surpresa. Queria
desesperadamente poder ler seus pensamentos. A pergunta tinha sido feita com a
perfeição de quem sabe lidar com esse tipo de situação. Flávio não tinha sido
autoritário, mostrando que “ou você aceita, ou vamos cancelar aqui e agora”, mas
também não tinha sido leve o suficiente para parecer que o poder estava, de fato,
na minha decisão.
Pensei por alguns segundos, pesando o valor do dinheiro e do que aquilo
poderia representar para minha imagem. Aparecer ao lado do Fiuk em uma
propaganda, com a briga havia menos de um mês... Mas eram 160 mil reais.
Comecei a falar com a boca totalmente seca, sem saber o que aconteceria após
minha resposta.
– Não. Não agora. Não posso fazer isso com meu público, muito menos com
meus fãs.
Para meu espanto, Flávio não ficou contrariado, em vez disso respondeu:
– Ok, vamos fazer assim: você faz sua campanha sozinho e o Fiuk faz a
campanha dele sozinho também, dois comerciais diferentes. Depois a gente vê
como vai estar a situação para a segunda campanha e aí você decide se vai querer
participar junto com ele ou não.
Ele não parecia triste, pelo contrário, parecia ter ficado feliz com a minha
resposta. Percebeu que eu não estava me vendendo inteiramente ao mundo
corporativo e que, sim, estava mais preocupado com a minha verdade do que com
o meu bolso.
Mas isso, obviamente, ninguém ficou sabendo.

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