Agora tenho insight histórico. Sei de
verdade qual foi a sensação de ter que ir
andando em direção à guilhotina na
Revolução Francesa. Conforme subo a
colina ao sair do metrô, segurando o
vinho que comprei ontem, meus passos
vão ficando mais e mais lentos. Cada vez
mais.
Na verdade, me dou conta de que não
estou mais andando. Estou parada. Estou
olhando para a casa dos Tavish e
engolindo em seco sem parar, tentando me
forçar a seguir em frente.
Foco, Poppy. É só um anel.
São só seus futuros sogros.
Foi apenas um “desentendimento”. De
acordo com Magnus,35 eles nunca
disseram abertamente que não querem que
ele se case comigo. Apenas insinuaram.
E talvez tenham mudado de ideia!
Além do mais, descobri uma coisa
positiva, pequena, mas positiva. Meu
seguro doméstico paga por perdas, ao que
tudo indica. É alguma coisa. Estou até
pensando em começar a conversa sobre o
anel falando do seguro e do quanto ele é
útil. “Sabe, Wanda, eu estava lendo um
folheto do HSBC outro dia...”
Ai, meu Deus, quero enganar a quem?
Não tem como melhorar a situação. É um
pesadelo. Vamos acabar logo com isso.
Meu telefone apita e o tiro do bolso só
por força do hábito. Já desisti de me
agarrar a um milagre.
— Você tem uma nova mensagem —
diz a voz familiar e sem pressa da mulher
do correio de voz.
Sinto como se conhecesse essa mulher
de tanto que ela já falou comigo. Quantas
pessoas já não ouviram a voz dela,
desesperadas para que ela falasse logo,
com os corações a toda de medo ou
esperança? Embora ela pareça tranquila
toda vez, sempre do mesmo jeito, como se
nem ligasse para o que você está prestes a
ouvir. Você deveria poder escolher
opções diferentes para tipos de notícias
diferentes, para que ela pudesse começar
assim: “Adivinhe! Ótimas notícias! Escute
seu correio de voz, oba!” Ou: “Sente-se,
querida. Tome alguma coisa. Você tem um
recado e não é bom.”
Aperto “1”, mudo o celular de mão e
começo a andar devagar. O recado foi
deixado quando eu estava no metrô. Deve
ser de Magnus, perguntando onde estou.
— Oi, aqui é do hotel Berrow e temos
um recado para Poppy Wyatt. Srta. Wyatt,
parece que seu anel foi encontrado ontem.
No entanto, por causa do caos depois do
alarme de incêndio...
O quê? O quê?
A alegria percorre meu corpo como
fogos de artifício. Não consigo ouvir
direito. Não consigo absorver as
palavras. Encontraram!
Já abandonei o recado. Estou ligando
pela discagem direta para o concierge. Eu
amo esse homem. Eu amo esse homem!
— Hotel Berrow... — É a voz do
concierge.
— Oi! — digo, sem fôlego. — É a
Poppy Wyatt. Vocês encontraram o meu
anel! Você é demais! Vou direto praí
buscar?
— Srta. Wyatt — interrompe ele. — A
senhorita ouviu o recado?
— Eu... em parte.
— Infelizmente... — Ele faz uma
pausa. — Infelizmente, não estamos certos
do paradeiro do anel.
Fico paralisada e olho para o celular.
Ele acabou de dizer o que eu acho que ele
disse?
— Você disse que tinha encontrado. —
Estou tentando ficar calma. — Como pode
não ter certeza do paradeiro?
— De acordo com um funcionário, uma
garçonete encontrou um anel de esmeralda
no tapete do salão durante o momento do
alarme de incêndio e o entregou para a
nossa gerente, a Sra. Fairfax. No entanto,
não estamos certos do que aconteceu
depois. Não conseguimos encontrá-lo no
cofre e em nenhum dos nossos locais
seguros. Lamentamos muito e faremos o
possível para...
— Bem, fale com a Sra. Fairfax! —
Tento controlar minha impaciência. —
Descubra o que ela fez com ele!
— Com toda certeza. Mas infelizmente
ela entrou de férias, e apesar dos nossos
esforços, não conseguimos fazer contato
com ela.
— Ela o roubou? — digo, horrorizada.
Vou encontrá-la. Custe o que custar.
Detetives, polícia, a Interpol... Já estou de
pé no tribunal, apontando para o anel num
saco plástico de provas, enquanto uma
mulher de meia-idade, bronzeada por ter
se escondido em Costa del Sol, olha para
mim com raiva do banco dos réus.
— A Sra. Fairfax é uma funcionária
fiel há trinta anos e já devolveu vários
itens de valor que pertenciam a hóspedes.
— Ele parece levemente ofendido. —
Acho difícil acreditar que ela faria uma
coisa dessas.
— Então deve estar em algum lugar no
hotel — digo, esperançosa.
— É o que estamos tentando descobrir.
Obviamente, assim que eu souber de mais
alguma coisa, entrarei em contato. Ainda
posso usar este número, não posso?
— Pode! — Eu instintivamente aperto
ainda mais o telefone. — Use este
número. Por favor, ligue assim que souber
de qualquer coisa. Obrigada.
Quando desligo, estou ofegante. Não
sei como me sentir. Quero dizer, a notícia
foi boa. Mais ou menos. Não é?
Exceto pelo fato de que ainda não
estou com o anel em segurança no meu
dedo. Mesmo assim todo mundo vai ficar
preocupado. Os pais de Magnus vão
pensar que sou estranha e irresponsável e
jamais vão me perdoar por fazê-los
passar por esse tipo de estresse. Então
continuo tendo um pesadelo dos brabos
pela frente.
A não ser... A não ser que eu possa...
Não. Eu não poderia. Poderia?
Estou parada imóvel, como uma
pilastra presa ao chão, com a mente a mil.
Certo. Vamos pensar nisso direito. Lógica
e eticamente. Se o anel não está realmente
desaparecido...
Passei por uma farmácia Boots na rua
principal, uns 400 metros atrás. Quase
sem perceber o que estou fazendo, refaço
os passos. Ignoro a vendedora que tenta
me dizer que estão fechando. E com a
cabeça baixa, vou até a prateleira de
primeiros socorros. Tem uma espécie de
luva e alguns rolos de curativos adesivos.
Compro tudo.
Alguns minutos depois, estou subindo a
colina de novo. Minha mão está coberta
de curativos, e não dá para perceber se
estou usando o anel ou não, e nem tenho
que mentir, posso dizer: “É difícil usar
anel com a mão queimada.” E é verdade.
Estou quase chegando na casa quando
o telefone toca e chega uma mensagem de
Sam Roxton.
Onde está o anexo?
Típico. Nada de “oi” nem explicação.
Ele apenas espera que eu saiba do que ele
está falando.
Como assim?
O e-mail de Ned Murdoch. Não veio anexo
nenhum.
Não foi culpa minha! Apenas encaminhei o email.
Eles devem ter esquecido de anexar.
Por que não pede que eles mandem de novo,
COM o anexo? Direto para o seu
computador?
Sei que pareço um pouco exasperada, e
é claro que ele percebe de cara.
A ideia de dividir o telefone foi sua, caso não
se lembre. Se está cansada disso, devolva o
aparelho.
Apressadamente, mando em resposta:
Não, não! Tranquilo. Se chegar, eu
encaminho. Não se preocupa. Achei que você
ia pedir que os e-mails fossem para o seu
endereço.
O pessoal técnico disse que resolveria rápido.
Mas eles são uns mentirosos.
Há uma pausa curta e ele manda outra
mensagem.
E aí, achou o anel?
Quase. O hotel achou, mas perdeu de novo.
Típico.
Pois é.
A essa altura, parei de andar e estou
encostada num muro. Sei que vou me
atrasar, mas não consigo evitar. É
reconfortante ter essa conversa virtual
pelo cosmos com uma pessoa que não me
conhece e não conhece Magnus, nem mais
ninguém. Depois de algum tempo, mando
uma mensagem num surto confessional.
Não vou contar para os meus sogros que perdi
o anel. Acha que é muito ruim?
Não acontece nada por um tempo, mas
depois ele responde.
Por que teria que contar?
Que tipo de pergunta ridícula é essa?
Eu reviro os olhos e digito:
O anel é deles!
Quase imediatamente chega a resposta
dele:
Não é deles. É seu. Não é da conta deles.
Nada tão preocupante.
Como ele pode escrever “não tão
preocupante”? Enquanto respondo, aperto
as teclas com irritação.
É uma maldita HERANÇA DE FAMÍLIA. To
indo jantar com eles agora. Vão querer ver o
anel no meu dedo. É mais do que
preocupante. Valeu.
Por um tempo, há silêncio e acho que
ele desistiu da nossa conversa. Mas
quando estou prestes a sair andando, outra
mensagem de texto chega no celular.
Como vai explicar o anel desaparecido?
Tenho um momento de debate interno.
Por que não ter uma segunda opinião?
Acerto a tela com cuidado, tiro uma foto
da mão coberta de curativos e mando por
mensagem multimídia. Cinco minutos
depois, ele responde:
Tá de brincadeira.
Sinto um ressentimento de leve e me
vejo digitando:
O que VOCÊ faria então?
Estou meio com esperança de que ele
tenha uma ideia brilhante que não tinha me
ocorrido. Mas a mensagem seguinte
apenas diz:
É por isso que homem não usa anel.
Que ótimo. Bem, ajudou muito. Estou
prestes a digitar uma coisa sarcástica em
resposta quando uma segunda mensagem
de texto chega:
Parece falso. Tira um dos curativos.
Eu olho para a minha mão consternada.
Talvez ele esteja certo.
OK. Tks.
Solto um curativo e começo a jogá-lo
para dentro da bolsa quando escuto a voz
de Magnus de repente.
— Poppy! O que você está fazendo?
Olho para a frente e vejo que ele está
descendo a rua na minha direção.
Desnorteada, coloco o celular na bolsa e
fecho o zíper. Ouço o som de outra
mensagem chegando, mas vou ter que
olhar depois.
— Oi, Magnus! O que você está
fazendo aqui?
— Vim comprar leite. Acabou. — Ele
para à minha frente e coloca as duas mãos
nos meus ombros, com os olhos castanhos
me observando com carinho e brilhando
de alegria. — O que houve? Está adiando
o momento terrível?
— Não! — Dou uma risada defensiva.
— É claro que não! Estou indo para a sua
casa.
— Sei o que você queria conversar
comigo.
— Você... Sabe? — Olho
involuntariamente para minha mão coberta
de curativos e depois desvio o olhar.
— Meu amor, me ouve. Você precisa
parar de se preocupar com os meus pais.
Eles vão amar você quando te conhecerem
direito. Vou cuidar para que isso
aconteça. Vamos nos divertir hoje à noite.
OK? Você só tem que relaxar e ser você
mesma.
— Tudo bem. — Eu faço que sim com
a cabeça e ele me aperta, depois olha para
os curativos.
— A mão ainda está ruim? Coitadinha.
Ele nem mencionou o anel. Sinto uma
pontinha de esperança. Talvez a noite seja
boa, afinal.
— Você contou para os seus pais sobre
o ensaio? É amanhã de noite na igreja.
— Eu sei. — Ele sorri. — Não se
preocupe. Está tudo certo.
Enquanto ando ao lado dele, saboreio a
ideia. A antiga igreja de pedra. O órgão
tocando quando entro. Os votos.
Sei que algumas noivas só pensam na
música ou nas flores ou no vestido. Mas
eu só penso nos votos. Na saúde e na
doença... Na riqueza e na pobreza...
Prometo lhe dar minha fidelidade
eterna... Durante toda a minha vida eu
ouvi essas palavras mágicas. Em
casamentos da família, em cenas de
filmes, até em casamentos reais. As
mesmas palavras, sempre repetidas, como
uma poesia que resistiu aos séculos. E
agora vamos recitá-las um para o outro.
Faz minha espinha dorsal formigar.
— Estou tão ansiosa para dizer nossos
votos. — Não consigo deixar de falar,
embora já tenha dito isso para ele umas
cem vezes antes.
Houve um curto período, logo depois
que ficamos noivos, em que Magnus
pareceu achar que íamos nos casar num
cartório. Ele não é religioso, nem os pais
dele. Mas assim que expliquei para ele o
quanto sempre desejei fazer os votos na
igreja, ele mudou de ideia e disse que não
conseguia imaginar nada mais
maravilhoso.
— Eu sei. — Ele aperta minha cintura
de novo. — Eu também.
— Você não se importa mesmo de
recitar aquelas palavras antigas?
— Amor, elas são lindas.
— Eu também acho. — Eu suspiro com
alegria. — É tão romântico.
Todas as vezes em que me imagino
com Magnus no altar, com as mãos unidas
e dizendo aquelas palavras para ele e ele
para mim com a voz clara e alta, parece
que nada mais importa.
Mas quando nos aproximamos da casa
vinte minutos depois, minha sensação de
segurança começa a desaparecer. Os
Tavish estão realmente de volta. A casa
inteira está acesa e ouço pela janela o
som de uma ópera. De repente me lembro
da vez em que Antony me perguntou o que
eu achava de Tannhäuser e eu disse que
não fumava.
Ai, Deus. Por que não fiz um curso
intensivo sobre ópera?
Magnus abre a porta da frente e estala
a língua.
— Droga. Esqueci de ligar para o Dr.
Wheeler. Vou demorar só alguns minutos.
Não consigo acreditar. Ele está
subindo a escada em direção ao
escritório. Ele não pode me deixar.
— Magnus. — Tento não parecer
muito em pânico.
— Entra! Meus pais estão na cozinha.
Ah, comprei uma coisa para você, para a
lua de mel. Abre! — Ele me joga um beijo
e entra no corredor.
Há uma caixa enorme com um laço na
poltrona do hall. Uau. Conheço a loja e
sei que é cara. Abro a caixa, rasgo o
papel de seda verde-claro de qualidade e
vejo um quimono japonês estampado de
cinza e branco. É lindíssimo, e tem até
uma combinação.
De impulso, entro na sala de estar da
frente, a que ninguém usa. Tiro a blusa e o
cardigã, visto a camisola e recoloco a
roupa. Ficou um pouco grande, mas é
linda mesmo assim. Toda macia da seda e
com uma sensação de que é um luxo.
É um presente lindo. É mesmo. Mas,
para ser sincera, o que eu preferia agora
era Magnus ao meu lado com a mão
segurando a minha com firmeza e me
dando apoio moral. Dobro o penhoar e o
recoloco no meio do papel rasgado, sem
me apressar.
Nenhum sinal de Magnus. Não posso
adiar mais.
— Magnus? — É a voz aguda e distinta
de Wanda, vinda da cozinha. — É você?
— Não, sou eu! Poppy! — Minha
garganta está tão apertada de nervosismo
que pareço uma estranha.
— Poppy! Entre!
Relaxe. Seja você mesma. Vamos.
Seguro a garrafa de vinho com firmeza
e entro na cozinha, que está quente e com
cheiro de molho à bolonhesa.
— Oi, como vocês estão? — digo,
nervosa e bem rápido. — Eu trouxe um
vinho. Espero que vocês gostem. É tinto.
— Poppy. — Wanda anda em minha
direção. O cabelo desgrenhado dela foi
recentemente pintado com hena e ela está
usando um dos vestidos estranhos e
soltinhos feito do que parece ser seda de
paraquedas e sapatos estilo boneca com
sola de borracha. A pele dela está tão
pálida, sem maquiagem, como sempre,
embora tenha feito um traço torto nos
lábios de batom vermelho.36 A bochecha
dela roça na minha e sinto um aroma de
perfume velho. — A nooooiva! — Ela
pronuncia a palavra com um cuidado que
beira o ridículo. — A “prometida”.
— A “nubente” — diz Antony,
levantando-se da cadeira. Ele está usando
uma jaqueta de tweed, a mesma da foto na
quarta capa do livro, e me examina com o
mesmo olhar intenso e perturbador. — “O
papa-figo casa-se com sua parceira
sarapintada, o lírio é noivo da abelha.”
Outro para sua coleção, querida? —
acrescenta ele para Wanda.
— Isso mesmo! Preciso de uma caneta.
Onde tem uma caneta? — Wanda começa
a procurar em meio aos papéis que já
tomam conta da bancada. — O dano
infligido à causa feminista pelo ridículo e
preguiçoso antropomorfismo. “Casa-se
com sua parceira sarapintada.” Eu lhe
pergunto, Poppy! — Ela se dirige a mim e
eu dou um sorriso sem jeito.
Não faço ideia do que ela está dizendo.
Nenhuma. Por que eles não podem
simplesmente dizer “oi, como você
está?”, como as pessoas normais?
— Qual é a sua visão sobre a reação
cultural ao antropomorfismo? Do ponto de
vista de uma jovem mulher?
Meu estômago dá um salto quando me
deu conta de que Antony está olhando na
minha direção de novo. Ah, minha mãe do
céu. Ele está falando comigo?
Antro o quê?
Se ao menos ele escrevesse as
perguntas e me desse cinco minutos para
pesquisar (e talvez um dicionário), sinto
que eu teria um pouco de chance de dizer
algo inteligente. Afinal, eu fiz faculdade.
Tenho trabalhos escritos nos quais usei
palavras longas e tenho uma dissertação.37
Minha professora de inglês até disse uma
vez que eu tinha uma “mente
investigativa”.38
Mas não tenho cinco minutos. Ele está
esperando que eu fale. E tem alguma coisa
no olhar intenso dele que transforma
minha língua em poeira.
— Bem. Hum... Acho que... é... um
debate interessante — digo fracamente. —
Crucial nos dias e na época de hoje.
Como foi o voo de vocês? — acrescento
rapidamente. Talvez possamos falar de
filmes ou alguma coisa assim.
— Horrível. — Wanda tira os olhos do
papel no qual está escrevendo. — Por
que as pessoas viajam de avião? Por
quê?
Não tenho certeza se ela espera uma
resposta ou não.
— Hum... para viajarem de férias e
tal...
— Já comecei a tomar notas para um
artigo sobre esse assunto — diz Wanda,
me interrompendo. — “O impulso
migratório”. Por que os humanos se
sentem compelidos a se lançarem de um
lado para outro do globo terrestre? Será
que estamos seguindo os antigos caminhos
migratórios dos nossos ancestrais?
— Você leu Burroughs? — diz Antony
para ela com interesse. — Não o livro, a
tese de doutorado.
Ninguém me ofereceu algo para beber
até agora. Sem fazer barulho, tentando me
camuflar ao ambiente, vou até a área da
cozinha para servir uma taça de vinho
para mim.
— Eu soube que Magnus deu a você o
anel de esmeralda da avó dele.
Dou um salto de pânico. Já estamos
falando do anel. Há um tom de
provocação na voz de Wanda ou foi
impressão minha? Será que ela sabe?
— Deu! É... é lindo. — Minhas mãos
estão tremendo tanto que quase derramo o
vinho.
Wanda não diz nada, só olha para
Antony e ergue as sobrancelhas de forma
significativa.
O que isso quis dizer? Por que um
elevar de sobrancelhas? O que eles estão
pensando? Merda, merda, eles vão pedir
para ver o anel, tudo vai desmoronar...
— É... é difícil usar anel com a mão
queimada — digo desesperadamente.
Pronto. Não era mentira. Exatamente.
— Queimada? — Wanda se vira e
segura a minha mão cheia de curativos. —
Minha querida! Você precisa ir ver Paul.
— Paul. — concorda Antony. — Com
certeza. Ligue para ele, Wanda.
— Nosso vizinho — explica ela. —
Dermatologista. O melhor. — Ela já está
ao telefone, enrolando o fio antiquado ao
redor do pulso. — Ele mora do outro lado
da rua.
Do outro lado da rua?
Fico paralisada de pavor. Como as
coisas puderam dar tão errado tão rápido?
Tenho uma visão de um homem enérgico
com valise de médico entrando na cozinha
e dizendo “Vamos dar uma olhada”, e
todo mundo se reunindo ao redor para ver
enquanto tiro os curativos.
Será que devo correr para o andar de
cima e procurar um fósforo? Ou água
fervente? Para ser sincera, acho que eu
preferiria a dor agonizante a ter que
admitir a verdade...
— Droga! Ele não está em casa. — Ela
coloca o fone no gancho.
— Que pena — consigo dizer quando
Magnus aparece na porta da cozinha
seguido de Felix, que diz “Oi, Poppy” e
mergulha de volta no livro acadêmico que
estava lendo.
— E então? — Magnus olha para mim
e para os pais, como se estivesse tentando
avaliar o astral no ambiente. — Como
vocês estão? Poppy não está ainda mais
bonita do que o normal? Ela não é linda?
— Ele pega meus cabelos na mão e
depois os solta.
Eu queria que ele não fizesse isso. Sei
que está tentando ser legal, mas me faz me
encolher de medo. Wanda parece confusa,
como se não tivesse ideia de como
responder a isso.
— Encantadora. — Antony sorri com
educação, como se estivesse admirando o
jardim de alguém.
— Conseguiu falar com o Dr.
Wheeler? — pergunta Wanda.
— Consegui. — responde Magnus. —
Ele diz que o foco é a gênese cultural.
— Bem, eu devo ter lido isso errado
— diz ela com irritação. — Estamos
tentando ver se conseguimos ter artigos
publicados no mesmo periódico. —
Wanda se vira para mim. — Todos nós
seis, incluindo Conrad e Margot. Trabalho
familiar, sabe. Felix fará o índice. Todos
envolvidos!
Todos menos eu passa pela minha
cabeça.
E isso é ridículo. Porque será que eu
quero escrever um artigo acadêmico num
periódico obscuro que ninguém lê? Não.
Será eu que sou capaz? Não. Sei o que é
gênese cultural? Não.39
— Sabe, Poppy já publicou artigos na
área dela — anuncia Magnus de repente,
como se ouvisse meus pensamentos e
desse um salto em minha defesa. — Não
foi, querida? — Ele sorri para mim com
orgulho. — Não seja modesta.
— Você já publicou? — Antony
desperta e olha para mim com mais
atenção do que nunca. — Ah. Isso é
interessante. Em que periódico?
Olho com impotência para Magnus. De
que ele está falando?
— Você se lembra! — diz ele para
mim. — Você não disse que tinha saído
uma coisa sua naquele periódico de
fisioterapia?
Ah, Deus. Não.
Vo u matar Magnus. Como ele pôde
falar nisso?
Antony e Wanda estão esperando que
eu responda. Até Felix está olhando com
interesse. Estão obviamente esperando
que eu anuncie uma descoberta na
influência cultural da fisioterapia nas
tribos nômades, ou algo do tipo.
— Foi no Physiotherapists’ Weekly
Roundup — murmuro por fim, olhando
para os meus pés. — Não é exatamente
um periódico. É mais... uma revista.
Publicaram uma carta minha uma vez.
— Sobre uma pesquisa? — diz Wanda.
— Não. — Eu engulo em seco. — Foi
sobre quando os pacientes têm ce-cê.
Falei que talvez devêssemos usar máscara
de gás. Foi... você sabe. Era para ser
engraçado.
Silêncio.
Fico tão envergonhada que não consigo
nem erguer a cabeça.
— Mas você escreveu uma dissertação
para se formar — arrisca Felix. — Você
não me contou uma vez?
Eu me viro com surpresa e vejo que
ele está me olhando com seriedade e
encorajamento.
— Sim. Mas... não foi publicada nem
nada. — Dou de ombros de maneira
desajeitada.
— Eu gostaria de ler um dia.
— Tudo bem.
Dou um sorriso, mas para ser sincera,
é patético. É claro que ele não quer ler, só
quer ser gentil. E é fofo da parte dele, mas
faz com que eu me sinta ainda pior,
porque tenho 29 anos e ele tem 17. Além
do mais, se ele estava tentando aumentar
minha confiança na frente dos pais dele,
não deu certo, porque eles nem estão
ouvindo.
— É claro que o humor é uma forma de
expressão que é preciso levar em conta na
narrativa cultural da pessoa — diz Wanda
sem muita segurança. — Acho que Jacob
C. Goodson fez um trabalho interessante
sobre “Por que os humanos fazem
piada”...
— Acho que era “Os humanos fazem
piada?” — corrige Antony. — É claro que
a tese dele era a de que...
Eles recomeçam. Eu expiro, com as
bochechas ainda quentes. Não consigo
lidar com isso. Quero alguém com quem
falar sobre férias, a novela ou qualquer
coisa, menos isso.
Quero dizer, é claro que eu amo
Magnus e tal. Mas estou aqui há cinco
minutos e estou tendo um ataque de
nervos. Como vou sobreviver ao Natal
todos os anos? E se nossos filhos forem
todos superinteligentes e eu não conseguir
entender o que eles estão dizendo e eles
me desprezarem porque não tenho
doutorado?
Há um cheiro forte no ar, e de repente
me dou conta de que o molho à bolonhesa
está queimando. Wanda está ali ao lado
do fogão, tagarelando sobre Aristóteles e
nem reparou. Eu gentilmente pego a colher
na mão dela e começo a mexer. Graças a
Deus, não é preciso ter Prêmio Nobel
para isso.
Pelo menos, terminar o jantar me fez
sentir útil. Mas meia hora depois estamos
todos sentados ao redor da mesa e estou
de volta ao estado mudo de pânico.
Não é de surpreender que Antony e
Wanda não queiram que eu case com
Magnus. Eles obviamente acham que sou
burrinha. Estamos no meio do jantar e não
disse uma única palavra. É tão difícil. A
conversa é como um rolo compressor. Ou
talvez uma sinfonia. Sim. E sou a flauta. E
tenho uma melodia, e gostaria de tocá-la,
mas não há maestro para me introduzir na
música. Então fico pegando fôlego e
desisto por medo.
— ... o editor encarregado infelizmente
viu de outra forma. Então não vai haver
uma nova edição do meu livro. — Antony
faz um som triste de estalo. — Tant pis.
De repente, estou alerta. Pela primeira
vez eu entendo a conversa e tenho uma
coisa a dizer!
— Que terrível! — falo, dando meu
apoio. — Por que não querem publicar
uma nova edição?
— Precisam de leitores. Precisam de
procura. — Antony dá um suspiro teatral.
— Ah, bem. Não importa.
— É claro que importa! — Eu me sinto
energizada. — Por que não escrevemos
para o editor e nos passamos por leitores
dizendo o quanto o livro é ótimo e
pedimos uma nova edição?
Já estou planejando as cartas. Prezado
senhor, estou chocada em saber que uma
nova edição desse livro maravilhoso não
foi publicada. Podíamos imprimi-la
usando fontes diferentes, mandá-las de
áreas diferentes do país...
— E você compraria mil exemplares?
— Antony me olha com aquela expressão
de abutre.
— Eu... hum... — Eu hesito, sem jeito.
— Talvez...
— Porque infelizmente, Poppy, se o
editor publicar mil livros que não
venderem, eu ficaria numa situação ainda
pior do que antes. — Ele me dá um
sorriso cruel. — Está vendo?
Eu me sinto totalmente derrotada e
burra.
— É — murmuro. — Sim. Eu...
entendo. Me desculpa.
Tento manter a compostura e começo a
tirar os pratos da mesa. Magnus está
rabiscando um argumento para Felix num
pedaço de papel e nem sei se ele ouviu.
Ele me dá um sorriso distraído e aperta
minha bunda quando eu passo. E isso não
faz eu me sentir melhor, para falar a
verdade.
Mas quando nos sentamos de novo
para comer o pudim, Magnus bate com o
garfo no copo e se levanta.
— Eu gostaria de fazer um brinde a
Poppy — diz ele com firmeza. — E de
dar-lhe as boas-vindas à família. Assim
como é bonita, ela também é carinhosa,
engraçada e uma pessoa maravilhosa. Sou
um homem de muita sorte.
Ele olha para as pessoas da mesa como
se desafiasse alguém a discordar, e dou
um sorrisinho agradecido.
— Eu também gostaria de dar as boasvindas
por mamãe e papai terem voltado.
— Magnus ergue o copo e os dois
assentem. — Sentimos saudades quando
vocês estavam fora!
— Eu não — diz Felix, e Wanda dá
uma gargalhada.
— É claro que não, garotinho terrível!
— E por fim... — Magnus bate no
copo de novo para obter atenção. — É
claro... Feliz aniversário para mamãe!
Muitos anos de vida é o desejo de todos
nós. — Ele joga um beijo para ela por
cima da mesa.
O quê? O que ele acabou de dizer?
Meu sorriso gruda nos lábios.
— Viva, viva! — Antony levanta o
copo. — Feliz aniversário, Wanda, meu
amor.
É aniversário da mãe dele? Mas ele
não me falou. Não comprei cartão. Nem
presente. Como ele pôde fazer isso
comigo?
Os homens são uns idiotas.
Felix tirou um pacote de debaixo da
cadeira e o está entregando a Wanda.
— Magnus — sussurro
desesperadamente quando ele se senta. —
Você não me falou que era aniversário da
sua mãe. Nunca me disse nada! Devia ter
me avisado!
Estou quase gaguejando de pânico. É
meu primeiro encontro com os pais dele
desde que ficamos noivos, eles não
gostam de mim, e agora isso.
Magnus parece perplexo.
— Querida, qual é o problema?
Como ele pode ser tão burro?
— Eu teria trazido um presente! —
digo baixinho ao mesmo tempo em que
Wanda agradece a Felix por um livro
antigo que ainda está desembrulhando.
— Ah! — Magnus acena. — Ela não se
importa. Para de se estressar. Você é um
anjo e todos amam você. Você gostou da
caneca, aliás?
— A o quê? — Nem consigo
acompanhar o que ele está dizendo.
— A caneca de “Recém-casados”.
Deixei na bancada do hall. Para nossa lua
de mel — diz ele ao ver minha expressão
confusa. — Eu falei sobre ela! Achei bem
legal.
— Não vi caneca nenhuma. — Olho
para ele sem entender. — Achei que você
tinha me dado aquela caixa grande com
laço de fita.
— Que caixa grande? — diz ele,
parecendo intrigado.
— E agora, minha querida — está
dizendo Antony com pompa para Wanda
—, não me importo de dizer que este ano
gastei a valer. Se me der um minuto...
Ele se levanta e está indo em direção
ao hall.
Ah, Deus. Minhas entranhas parecem
ter virado água. Não. Por favor. Não...
— Acho... — eu começo a falar, mas
minha voz não sai direito. — Acho que eu
talvez... por engano...
— Mas que... — A exclamação de
Antony soa no hall. — O que aconteceu
com isto?
Um momento depois, ele entra na sala,
segurando a caixa. Está toda bagunçada. O
papel rasgado está todo espalhado. O
penhoar está meio caído para fora.
Minha cabeça está latejando.
— Lamento muito... — Mal consigo
emitir as palavras. — Achei... achei que
era para mim. Então eu... eu abri.
Há um silêncio mortal. Todos os rostos
estão perplexos, inclusive o de Magnus.
— Querida... — ele começa a dizer
fracamente, mas se interrompe como se
não conseguisse pensar no que dizer.
— Não se preocupe! — diz Wanda
rapidamente. — Me dê aqui. Não me
importo com o embrulho.
— Mas tinha outra coisa! — Antony
está mexendo no papel de seda,
procurando. — Onde está a outra parte?
Estava aqui.
De repente, me dou conta do que ele
está falando e dou um choramingo
interior. Todas as vezes em que penso que
as coisas não podem piorar, elas
despencam. Encontram novas e
apavorantes profundezas.
— Acho... você quer dizer... — Estou
gaguejando e meu rosto está vermelho
como um pimentão. — Isto? Puxo uma
ponta da camisola para fora da blusa e
todos olham para ela, chocados.
Estou sentada à mesa de jantar, usando
a lingerie da minha futura sogra. É como
um sonho distorcido do qual você acorda
e pensa: “Caramba! Ainda bem que isso
não aconteceu!”
Os rostos ao redor da mesa estão
imóveis e de queixos caídos, como uma
fileira de versões daquele quadro, O
Grito.
— Vou... vou mandar para a lavanderia
— sussurro roucamente. — Desculpa.
Certo. Esta noite se desenrolou da
maneira mais terrível possível. Só há uma
solução, que é continuar bebendo vinho
até meus nervos ficarem dormentes ou eu
desmaiar. O que acontecer primeiro.
O jantar acaba e todos superaram o
incidente da camisola. Mais ou menos.
Na verdade, decidiram transformar o
incidente numa piada familiar. E é gentil
da parte deles, mas significa que Antony
fica fazendo comentários irritantemente
engraçadinhos como “Vamos comer
chocolates? A não ser que Poppy já tenha
comido todos”. E sei que eu deveria ter
senso de humor, mas cada vez que ele
fala, eu me encolho.
Agora estamos sentados nos velhos
sofás caroçudos na sala de visitas jogando
Palavras Cruzadas. Os Tavish são
completamente loucos por Palavras
Cruzadas. Eles têm um tabuleiro especial
que gira, peças chiques de madeira e até
um livro de capa de couro no qual anotam
a pontuação desde 1998. Wanda é a líder
atual, com Magnus em segundo lugar por
uma pequena diferença.
Antony começou e escreveu BROMAR
(74 pontos). Wanda fez IRÍDIO (65
pontos). Felix fez BARCAÇA (80 pontos).
Magnus fez CONTUSÃO (65 pontos).40 E eu
fiz LUA (5 pontos).
Em minha família, “LUA” seria uma
boa palavra. Cinco pontos seria uma
pontuação legal. Você não receberia
olhares de piedade e ruídos com a
garganta, e nem se sentiria uma derrotada.
Não costumo pensar sobre o passado
nem ficar relembrando. Não é o tipo de
coisa que eu goste de fazer. Mas sentada
ali, rígida de fracasso, dobrando os
joelhos, inspirando o cheiro de mofo dos
livros e tapetes e da lareira velha dos
Tavish, não consigo evitar. Só um pouco.
Só um pedacinho de lembrança. Nós na
cozinha. Eu e meus irmãozinhos, Toby e
Tom, comendo torrada com realçador de
sabor Marmite ao redor do tabuleiro de
Palavras Cruzadas. Eu lembro claramente;
até consigo sentir o gosto de Marmite. Os
dois ficaram tão frustrados que fizeram
um monte de peças adicionais de papel e
decidiram que podiam pegar quantas
quisessem. A sala toda ficou coberta de
quadrados de papel cortados com letras
escritas à caneta. Tom se deu uns seis
“z’s” e Toby tinha uns dez “e’s”. E mesmo
assim eles só faziam uns quatro pontos a
cada jogada e terminaram brigando e
gritando: “Não é justo! Não é justo!”
Sinto as lágrimas nos meus olhos e
pisco furiosamente. Estou sendo burra.
Ridícula. Primeiro, esta é minha nova
família e estou tentando me inserir.
Segundo, Toby e Tom estão na faculdade
agora. Eles têm vozes grossas e Tom
deixou a barba crescer. Nunca mais
jogamos Palavras Cruzadas. Nem sei onde
está a caixa do jogo. Terceiro...
— Poppy?
— Certo. Sim! Estou... decidindo...
Estamos na segunda rodada. Antony
a ume nto u BROMAR para EMBROMAR.
Wanda fez simultaneamente OD41 e
OVÁRIO. Felix fez a palavra ELICIAR, e
Magnus fez JAJA, da qual Felix duvidou,
mas ela estava no dicionário e ele marcou
muitos pontos pela pontuação de palavra
dobrada. Agora Felix foi fazer café e eu
estou mexendo nas minhas peças sem
esperanças há cinco minutos.
Quase não consigo jogar na minha vez
de tão humilhada que estou. Eu nunca
deveria ter concordado em jogar. Fiquei
olhando para as letras idiotas, e esta é,
para ser sincera, a melhor palavra que
consigo fazer.
— BOI — lê Antony com cuidado
conforme coloco minhas peças. — Boi. O
mamífero, suponho?
—Muito bem! — diz Magnus com
animação. — Seis pontos!
Não consigo olhar para ele. Estou
procurando com tristeza em outras duas
peças. A e L. Como se elas fossem me
ajudar.
— Ei, Poppy — diz Felix, voltando
para a sala com uma bandeja. — Seu
telefone está tocando na cozinha. O que
você colocou? Ah, boi. — Quando ele
olha para o tabuleiro, os lábios dele se
contorcem e vejo Wanda franzir a testa
ameaçadoramente.
Não consigo mais suportar.
— Vou lá ver quem ligou, se vocês não
se importam — digo. — Pode ser
importante.
Fujo para a cozinha, tiro o telefone da
bolsa e me recosto no calor reconfortante
do fogão. Há três mensagens de texto de
Sam, começando com “Boa sorte”, que
ele mandou duas horas atrás. Há vinte
minutos ele mandou “Preciso pedir um
favor”, seguido de “Está aí?”
A ligação também era dele. Acho que é
melhor eu ver o que está acontecendo.
Digito o número dele e pego com irritação
alguns restos de bolo de aniversário na
bancada.
— Ótimo. Poppy. Você pode me fazer
um grande favor? — diz ele assim que
atende. — Estou longe do escritório e
aconteceu alguma coisa com o meu
celular. Não consigo enviar nada, e
preciso mandar um e-mail para Viv
Amberley. Você se importa?
— Ah, sim, Vivien Amberley. — Eu
começo a falar com conhecimento, mas
me faço parar.
Talvez eu não devesse revelar que li
toda a correspondência sobre Vivien
Amberley. Ela trabalha no departamento
de estratégias e se candidatou para um
emprego em outra empresa de consultoria.
Sam está tentando desesperadamente
mantê-la na empresa, mas nada funcionou
e ela disse que vai pedir demissão
amanhã.
Certo. Eu sei que fui xereta. Mas
quando você começa a ler os e-mails de
outra pessoa, não consegue parar. Você
precisa saber o que aconteceu. É bem
viciante ir descendo pelas infinitas trocas
de e-mails para entender a história.
Sempre para trás. É como enrolar
pequenos carretéis de vida.
— Se você pudesse mandar um e-mail
rápido para ela, eu ficaria muito
agradecido — diz Sam. — De um dos
meus endereços eletrônicos. Para
vivienamberley@skynet.com. Anotou?
Francamente. O que eu sou, assistente
dele?
— É... tudo bem — digo contrariada e
clico no endereço dela. — O que eu
escrevo?
— Oi, Viv. Eu adoraria conversar
sobre isso com você de novo. Por favor,
ligue para marcar uma reunião num
horário conveniente para você amanhã.
Tenho certeza de que podemos pensar em
alguma coisa. Sam.
Digito com cuidado, usando minha mão
sem curativos, mas depois hesito.
— Já mandou? — diz Sam.
Meu dedo está sobre a tecla, pronto
para enviar. Mas não consigo.
— Alô?
— Não a chame de Viv — digo, de
ímpeto. — Ela detesta. Gosta de ser
chamada de Vivien.
— O quê? — Sam parece chocado. —
Como diabos...
— Estava num e-mail antigo que foi
encaminhado. Ela pediu para que Peter
Snell não a chamasse de Viv, mas ele não
percebeu. Nem Jeremy Atheling. E agora
você também vai chamar de Viv!
Há um silêncio curto.
— Poppy — diz Sam por fim, e
imagino aquelas sobrancelhas escuras
dele completamente franzidas. — Você
andou lendo meus e-mails?
— Não! — respondo, na defensiva. —
Só dei uma olhada em alguns...
— Mas tem certeza dessa história de
Viv?
— Tenho! Claro!
— Estou procurando o e-mail agora...
— Enfio um pedaço de glacê na boca
enquanto espero, mas logo Sam volta à
linha. — Você está certa.
— É claro que estou!
— Tudo bem. Pode mudar o nome dela
pra Vivien?
— Espere um minuto... — Conserto o
e-mail e o envio. — Pronto.
— Valeu. Me salvou. Foi bem atento
da sua parte. É sempre tão esperta assim?
Até parece. Sou tão esperta que a única
palavra que consigo pensar no Palavras
Cruzadas é “boi”.
— Sim, o tempo todo — digo com
sarcasmo, mas acho que ele não repara no
meu tom.
— Bem, estou em débito com você. E
me desculpe por perturbar sua noite. É
que a situação é bem urgente.
— Não se preocupa. Eu entendo —
digo, de maneira compreensiva. — Sabe,
tenho certeza de que Vivien quer ficar na
Consultoria White Globe.
Ops. Isso escapou.
— Ah, é? Achei que não tivesse lido
meus e-mails.
— Não li! — falo apressadamente. —
Quero dizer... você sabe. Talvez um ou
dois. O suficiente para formar uma ideia.
— Uma ideia! — Ele dá uma risada
curta. — Tudo bem, Poppy Wyatt, qual é a
sua ideia? Pedi a opinião de todo mundo,
por que não ouvir a sua? Por que nossa
melhor estrategista está dando um passo
para trás para uma empresa inferior
quando ofereci tudo que ela poderia
querer, desde uma promoção e dinheiro à
notoriedade...
— Bem, esse é o problema —
interrompo-o, intrigada. Ele deve ter
percebido. — Ela não quer nada disso.
Ela fica muito estressada por causa da
pressão, principalmente pelas coisas de
mídia. Como naquela vez em que ela teve
que falar na Rádio 4 sem ser avisada.
Há um longo silêncio do outro lado da
linha.
— Certo... que merda que está
acontecendo? — diz Sam, por fim. —
Como você ia saber de algo desse tipo?
Não há como eu sair dessa.
— Vi na avaliação dela. — Acabo
confessando. — Eu fiquei muito entediada
no metrô hoje, e estava num anexo...
— Não estava na avaliação dela. —
Ele parece nervoso. — Acredite, já li
esse documento de trás para a frente, e
não tem nada sobre fazer aparições na
mídia...
— Não na mais recente. — Faço uma
careta de constrangimento. — Na
avaliação de três anos atrás. — Não
consigo acreditar que estou admitindo que
li aquele também. — Além do mais, ela
disse naquele primeiro e-mail para você:
“Já te contei meus problemas, mas
ninguém deu valor nenhum.” Acho que é
isso que ela quer dizer.
A verdade é que sinto uma afinidade
enorme com Vivien. Eu também ficaria
apavorada de falar na Rádio 4. Todos os
apresentadores parecem Antony e Wanda.
Há outro período de silêncio, tão longo
que me pergunto se Sam ainda está lá.
— Você pode estar certa — diz Sam
por fim. — Talvez esteja certa.
— É só uma ideia — digo, recuando.
— Devo estar errada.
— Mas por que ela não diria isso pra
mim?
— Talvez tenha vergonha.— Dou de
ombros. — Talvez ela pense que já
deixou claro e que você não vai fazer
nada em relação ao que ela sente. Talvez
ache mais fácil mudar de emprego.
— Certo. — Sam expira. — Obrigado.
Vou atrás disso. Estou muito feliz por ter
ligado, e lamento ter perturbado sua noite.
— Não tem problema. — Dou de
ombros com tristeza e pego algumas
migalhas de bolo. — Para ser sincera,
estou feliz em escapar.
— Está tão bom assim, é? — Ele
parece estar se divertindo. — E a história
dos curativos, como foi?
— Acredite, os curativos são o menor
dos meus problemas.
— O que está acontecendo?
Eu abaixo a voz e olho para a porta.
— Estamos jogando Palavras
Cruzadas. É um pesadelo.
— Palavras Cruzadas? — Ele parece
surpreso. — Palavras Cruzadas é legal.
— Não quando você está jogando com
uma família de gênios. Eles formam
palavras tipo “irídio”. E eu fiz “boi”.
Sam cai na gargalhada.
— Fico feliz em ser engraçada — digo
com irritação.
— Tudo bem. — Ele para de rir. —
Estou em débito com você. Me diga suas
letras. Te dou uma palavra boa.
— Não consigo lembrar! — Eu reviro
os olhos. — Estou na cozinha.
— Você deve se lembrar de algumas.
Tenta.
— Muito bem. Tenho um W e um Z. —
Essa conversa é tão bizarra que não
consigo evitar dar uma risadinha.
— Olha as outras. Manda por
mensagem. Vou te dar uma palavra.
— Pensei que você estivesse num
seminário!
— Posso estar num seminário e jogar
Palavras Cruzadas ao mesmo tempo.
Ele está falando sério? Essa é a ideia
mais ridícula e absurda que já ouvi.
Além do mais, isso seria roubo.
E, além do mais, quem disse que ele é
bom em Palavras Cruzadas?
— Tudo bem — digo depois de alguns
segundos. — Combinado.
Eu desligo e volto para a sala de
visitas. No tabuleiro parece ter brotado
uma série de palavras impossíveis.
Alguém fez a palavra UGAR. Isso é uma
palavra? Só se for numa língua esquimó.
— Tudo bem, Poppy? — pergunta
Wanda com um tom tão intenso e artificial
que instantaneamente sei que estavam
falando de mim. Provavelmente disseram
a Magnus que, se ele se casar comigo, vão
deixá-lo sem um tostão, ou algo assim.
— Tudo! — Tento parecer alegre. —
Foi um paciente que ligou — acrescento,
cruzando os dedos nas costas. — Às
vezes faço consultas por telefone, então eu
talvez tenha que mandar uma mensagem de
texto, se não se importarem.
Ninguém responde. Estão todos
olhando para suas peças de novo.
Posiciono o celular de forma que a tela
pegue o tabuleiro e minhas peças. Em
seguida, aperto o botão de tirar foto.
— Só estou tirando uma foto em
família! — digo rapidamente quando os
rostos se levantam em resposta ao flash.
Já estou enviando a foto para Sam.
— É sua vez, Poppy — diz Magnus. —
Você quer alguma ajuda, querida? — diz
ele baixinho.
Sei que ele está tentando ser gentil.
Mas tem alguma coisa no jeito como ele
fala que me magoa.
— Está tudo bem, obrigada. Pode
deixar. — Começo a mexer nas letras no
suporte, tentando parecer confiante.
Depois de um ou dois minutos, olho o
celular, para o caso de uma mensagem de
texto ter chegado sem que eu percebesse,
mas não tem nada.
Todo mundo está concentrado em suas
peças ou no tabuleiro. A atmosfera é
silenciosa e intensa, como numa sala de
provas. Mexo nas minhas peças cada vez
mais bruscamente, desejando que alguma
palavra estupenda surja na minha cabeça.
Mas, independentemente do que eu faça, a
situação está uma droga. Posso fazer NUA.
Ou NAU.
E o celular ainda está em silêncio. Sam
devia estar brincando quando falou em me
ajudar. É claro que estava brincando.
Sinto uma onda de humilhação. O que ele
vai pensar quando uma foto de um
tabuleiro de Palavras Cruzadas aparecer
no celular dele?
— Alguma ideia, Poppy? — diz
Wanda, num tom encorajador, como se eu
fosse uma criança deficiente. De repente,
me pergunto se Magnus mandou os pais
serem legais comigo enquanto eu estava
na cozinha.
— Só estou decidindo entre as opções
que eu tenho. — Procuro dar um sorriso
alegre.
Certo. Tenho que fazer isso. Não posso
mais adiar. Vou fazer NUA.
Não, NAU.
Ah, qual é a diferença?
Com o coração no chão, coloco o U e o
A no tabuleiro na hora em que meu celular
faz o barulho de mensagem de texto.
Usa uma palavra escocesa, dicionarizada.
WHAIZLED. Pega o D de IRÍDIO. Pontuação
tripla com 50 pontos de bônus.
Ai, meu Deus.
Não consigo evitar uma gargalhada, e
Antony me lança um olhar estranho.
— Me desculpe — digo
apressadamente. — É só... o meu paciente
fazendo uma piada. — Meu celular toca
de novo.
É dialeto escocês, aliás. Usado por Robert
Burns.
— Então essa é a sua palavra, Poppy?
— Antony está olhando para a minha
jogada patética. — “Nua”? Muito bom.
Parabéns!
A exaltação dele é dolorosa.
— Me desculpa — corrijo-me
rapidamente. — Erro meu. Pensando bem,
acho que vou fazer essa palavra aqui.
Com cuidado, coloco a palavra
WHAIZLED no tabuleiro e me reclino de
volta, parecendo indiferente.
Há um silêncio atônito.
— Poppy querida — diz Magnus por
fim. — Tem que ser uma palavra
verdadeira, sabe. Você não pode
inventar...
— Ah, você não conhece essa palavra?
— Eu adoto um tom de surpresa. — Me
desculpa. Achei que era bastante
conhecida.
— Whay-zled? — arrisca-se Wanda
com insegurança. — Why-zled? Como se
pronuncia exatamente?
Ai, Deus. Não faço a mínima ideia.
— Hum... depende da região. É um
dialeto tradicional escocês, é claro.
Usado por Robert Burns — acrescento
com ar de sabedoria, como se eu fosse
Stephen Fry.42 — Assisti a um
documentário sobre ele outro dia. É uma
paixão minha, na verdade.
— Não sabia que você se interessava
por Burns. —Magnus parece surpreso.
— Ah, sim — prossigo da maneira
mais convincente possível. — Sempre me
interessei.
— Em qual poema a palavra
“whaizled” aparece? — insiste Wanda.
— É... — Eu engulo em seco. — É um
poema bem bonito na verdade. Não
consigo me lembrar do título agora, mas é
mais ou menos assim...
Eu hesito, tentando pensar em como
seria um poema de Burns. Ouvi alguns
numa festa de Ano-Novo escocês, mas
não entendi uma palavra.
— “Twas whaizled... when the wully
whaizle... wailed.” Algo do tipo “Fora
difícil pra ti então sussurrar. Mas é
audível aqui o som da brisa no ar”. E por
aí vai! — interrompo-me com alegria. —
Não vou entediar vocês.
Antony ergue o olhar do volume de N a
Z do dicionário em inglês, que ele pegou
no mesmo instante em que coloquei as
peças e que estava folheando.
— Está certo. — Ele parece um pouco
confuso. — Whaizled. Correspondente a
“wheezed” no dialeto escocês. Muito
bem. Impressionante.
— Bravo, Poppy. — Wanda está
fazendo a conta. — Tem pontuação tripla
e bônus de cinquenta pontos... então dá...
131 pontos! A pontuação mais alta até
agora!
— Cento e trinta e um? — Antony pega
a folha de papel. — Tem certeza?
— Parabéns, Poppy! — Felix se
inclina para apertar a minha mão.
— Não foi nada demais. — Sorri com
modéstia. — Vamos continuar?
Notas
35. Acabei arrancando isso dele por telefone na
hora do almoço.
36. Magnus diz que Wanda nunca tomou sol na
vida, e ela acha que as pessoas que viajam de
férias para se deitar em espreguiçadeiras devem
ser deficientes mentais. Eu devo ser uma, então.
37. “O estudo do movimento contínuo passivo
após artroplastia total do joelho.” Ainda tenho
guardado, dentro de uma pasta de plástico.
38. Mas não disse exatamente o que ela estava
investigando.
39. Embora eu seja boa em notas de rodapé.
Poderiam me deixar responsável por elas.
40. Não faço ideia do que a maioria dessas
palavras significa.
41. Que, pelo que entendi, é uma palavra. Boba,
eu.
42. Estou falando de Stephen Fry do programa
QI, não do programa de comédia Jeeves and
Wooster. Embora Jeeves provavelmente
soubesse bastante sobre as poesias de Burns
também.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
Capitulo 4
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às 16:59
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