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sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Capitulo 5

12:19 da tarde





Haviam muitas coisas erradas comigo.

Aparentemente, eu tenho um pulmão perfurado. Uma ruptura no baço.

Hemorragia interna de origem desconhecida. E o mais sério, contusões no

cérebro. Eu também tenho costelas quebradas. Abrasões nas minhas pernas,

que vão precisar de enxerto de pele; e no meu rosto, que vão necessitar de

plástica – mas, como o doutor notou, isso apenas se eu tiver sorte.

Agora, na cirurgia, os médicos tem que remover meu baço, inserir um novo

tubo para drenar meu pulmão, e costurar o que quer que esteja causando

minha hemorragia interna. Não tem muita coisa que eles podem fazer por meu

cérebro.

“Vamos esperar para ver,” um dos cirurgiões disse, olhando para

tomografia da minha cabeça. “Enquanto isso, ligue para o banco de sangue. Eu

preciso de duas unidades de O- e mantenha mais duas unidades prontas.”

O negativo. Meu tipo sanguíneo. Eu não fazia ideia. Não é como se algum

dia eu tenha que ter me preocupado com isso. Eu nunca estive no hospital a não

ser a vez que e fui para emergência depois de cortar meu tornozelo em vidro

quebrado. Eu nem precisei de pontos, só uma vacina contra tétano.

Na sala de cirurgia, os doutores estão debatendo sobre que música tocar,

como fizemos no carro essa manhã. Um cara quer jazz. Outro quer rock. A

anestesista, que está perto da minha cabeça, requisita música clássica. Eu torço

por ela, e sinto que isso deve ter ajudado porque alguém liga o CD de Wagner,

embora “Ride of the Valkyries” não fosse o que eu tinha em mente. Eu esperava

por algum um pouco mais leve. Four Season, talvez.

A sala de cirurgia é pequena e está lotada, cheia de luzes brilhantes

cegantes, que mostram o quão sujo este lugar está. Não é nada parecido como

na TV, onde as salas de cirurgia são como enormes teatros que podem

acomodar uma cantora de opera, e uma audiência. O chão, embora seja

brilhante, está escuro com marcas de fricção e linhas enferrujadas, o que eu

tomo como sendo antigas manchas de sangue.

Sangue. Está por toda parte. Não intimida os doutores nem um pouco. Eles

cortam para ver e sugam pelo rio dele, como se estivessem lavando os pratos

em uma água cheia de sabão. Enquanto isso, eles bombeiam um enorme

estoque em minhas veias.

O cirurgião que queria ouvir rock sua muito. Uma das enfermeiras tem que

periodicamente limpar ele com uma gaze que ela segura com uma pinça. Em

certo ponto, ele sua através de sua mascara e tem que substituir ela.

A anestesista tem dedos gentis. Ela está perto da minha cabeça, mantendo

um olho em meus sinais vitais, ajustando a quantidade de fluidos e gases e

drogas que eles estão me dando. Ela deve estar fazendo um bom trabalho

porque eu não pareço estar sentindo nada, embora eles estejam cortando meu

corpo. É um trabalho duro e sujo, em nada parecido com o jogo Operação que

costumávamos jogar quando crianças em que você tem que tomar cuidado para

não tocar nas laterais enquanto você remove um osso, ou o apito vai tocar.

A anestesista distraidamente acaricia minhas têmporas através da luva de

látex. É o que minha mãe costumava fazer quando eu aparecia com uma gripe

ou tinha uma daquelas dores de cabeça que doíam tanto que eu costumava

imaginar cortando uma veia em minha têmpora para aliviar a pressão.

O CD de Wagner já se repetiu duas vezes agora. Os doutores decidem que é

hora para um novo gênero. Jazz vence. As pessoas sempre assumem que

porque eu gosto de música clássica, sou uma aficionada por jazz. Não sou. Papai

é. Ele ama, especialmente a selvagem música de Coltrane. Ele diz que jazz é

punk para gente velha. Eu acho que isso explica, porque eu não gosto de punk

também.

A operação não termina nunca. Estou exausta de ver. Eu não sei como os

médicos tem a força para continuar. Eles estão parados, mas parecia mais difícil

do que correr uma maratona.

Eu começo a me distrair. E então começo a me perguntar sobre o estado em

que estou. Se não estou morta – e o meu monitor cardíaco está bipando, então

assumo que não estou – mas também não estou no meu corpo, posso ir a algum

lugar? Sou um fantasma? Posso me transportar para uma praia no Hawaii?

Posso aparecer no Carnegie Hall em Nova Iorque? Posso ir até Teddy?

Só para experimentar, eu enrugo meu nariz como Samantha de A feiticeira.

Nada acontece. Eu estalo meus dedos. Bato meus sapatos. Ainda estou aqui.

Eu decido tentar uma manobra mais simples. Eu ando até uma parede,

imaginando que eu vou passar por ela e sair do outro lado. Só que o que

acontece quando ando até a parede é que eu bato na parede.

Uma enfermeira aparece com uma bolsa de sangue, e antes da porta se

fechar, eu passo por ela. Agora estou no corredor do hospital. Tem muitos

médicos e infermeiras de roupas azul e verde correndo. Uma mulher numa

maca, seu cabelo em uma touca azul, e um soro em seu braço, chamando,

“William, William.” Eu ando para um pouco mais longe. Tem vários salas de

operação, todas cheias de pessoas dormindo. Se os pacientes dentro dessas

salas são como eu, porque eu não posso ver as pessoas fora das pessoas? Se

todo mundo está vagabundeando como eu pareço estar? Eu realmente gostaria

de conhecer alguém no meu estado. Eu tenho algumas perguntas, como, o que

é exatamente esse estado e como saio dele? Como volto para meu corpo?

Tenho que esperar os médicos me acordarem? Mas não tem mais ninguém por

perto. Talvez o resto deles tenha descoberto como chegar no Havaí.

Eu sigo uma enfermeira através de um par de portas automáticas duplas.

Estou numa pequena área de espera. Meus avós estão aqui.

Vovó está conversando com vovô, ou talvez com o ar. É o jeito dela de não

deixar suas emoções a superarem. Eu já vi ela fazer isso antes, quando vovô

teve um ataque cardíaco. Ela está usando seus Wellies¹ e seu avental de

jardinagem, que está sujo de lama. Ela deveria estar trabalhando em sua

plantação quando soube sobre nós.

O cabelo de vovó é curto e encaracolado e grisalho; ela o tem usado numa

onda permanente, papai diz, desde os anos 1970. “É fácil,” vovó diz. “Sem

confusão, sem discussão.” Isso é tão típico dela. Sem bobagens. Ela é tão

essencialmente pratica que a maior parte das pessoas nunca diriam que ela tem

algo por anjos. Ela tem uma coleção de anjos de cerâmica, anjos de quintal,

anjos de vidro, diga-você anjos, é um conjunto especial de porcelana em seu

quarto. E ela não apenas coleciona anjos; ela acredita neles. Ela acha que eles

estão por toda parte.Uma vez, um par de patos fez ninho no lago na floresta

atrás da casa deles. Vovó estava convencida que eram seus pai a muito mortos,

que vieram para cuidar dela.

Outra vez, estavamos sentadas na varanda e eu vi um pássaro vermelho.

“Aquilo é um cruza-bico vermelho?” eu perguntei a vovó.

Ela balançou sua cabeça. “Minha irmã Glória é um cruza-bico,” vovó disse, se

referindo a sua recentemente falecida tia-avó Glo, com quem vovó nunca se

deu bem. “Ela não viria para cá.”

Vovô está olhando para a sujeira de um copo de isopor, descascando o topo

para que pequenas bolas brancas descansem em seu colo. Eu percebo que é o

pior tipo de sobra, do tipo que parece ter sido em 1997 e está parado ali desde

então. Mesmo assim, não me imporia de tomar um copo.

Você consegue desenhar uma linha reta de vovô para papai para Teddy,

embora o cabelo de vovô tenha ido de loiro para grisalho e ele seja mais

troncudo que Teddu, que é magro, e papai, que é musculoso devido aos

levantamentos de peso. Mas todos eles tem os mesmos olhos azul-acinzentado,

a cor do oceano num dia de nuvens.

Talvez seja por isso que agora eu acho difícil olhar para vovô.

Juilliard foi ideia da vovó. Ela é originalmente de Massachussetts, mas se moveu

para o Oregon em 1955, sozinha. Isso não seria nada demais, mas acho que a 52

anos atrás era meio escandaloso para uma mulher solteira de 22 anos fazer esse

tipo de coisa. Vovó alegou que ela estava atraída pelo selvagem nele e não

ficava mais selvagem do que as florestas sem fim e as praias do Oregon. Ela

conseguiu um emprego como secretaria trabalhando para a Serviço Florestal.

Vovoô estava trabalhando lá como biologista.

As vezes voltamos para o Massachusettes no verão, para um hotel na parte

oeste do estado que é ocupada por um semana pela extensa família de vovó. É

quando vejo meus primos em segundo graus e tia-avós e tios cujos nomes eu

mal reconheço. Eu tenho muita família em Oregon, mas são todos do lado do

vovô.

No verão passado em um retiro em Massachusetts, eu trouxe meu

violoncelo para poder continuar a praticar para um concerto que estava por vir.

O vôo não estava cheio, então eles me deixaram viajar com ele ao meu lado,

como os profissionais fazem. Teddy acho que era hilário e ficava tentando

alimentar ele com pretzels.

No hotel, eu dei um pequeno concerto uma noite, no salão principal, com

meus parentes e os animais empalhados amontoados como minha audiência.

Foi depois disso que alguém mencionou Juilliard, e vovó foi tomada pela ideia.

A principio, parecia bobagem. Tem um programa de musica perfeitamente

bom na universidade perto de nós. E, se eu quisesse me esticar, havia um

conservatório em Seattle, que era apenas a algumas horas de viagem. Juilliard é

do outro lado do país. E caro. Mamãe e papai estavam intrigados com a ideia,

mas eu percebi que nenhum deles queria me deixar ir a Nova Iorque ou ter que

fazer uma penhora para que eu talvez pudesse me tornar uma violoncelista de

segunda categoria para uma orquestra de cidade pequena. Eles não faziam ideia

se eu era boa o bastante. Na verdade, eu também não fazia. Professora Christie

me disse que eu era uma das suas alunas mais promissoras que ela já ensinou,

mas ela nunca mencionou Juilliard para mim. Juilliard é para músicos virtuosos,

e parecia arrogante sequer pensar que eles me olhariam.

Mas depois do retiro, quando mais algum, alguém imparcial da costa Leste,

disse que eu era digna de Juilliard, a ideia se enterrou no cérebro de vovó. Ela

tomou como sua obrigação falar com a professora Christie sobre isso, e minha

professora se apoderou da ideia como um terrier com um osso.

Então, eu preenchi os formulários, juntei minhas cartas de recomendação, e

as enviei com uma gravação de mim tocando. Eu não contei a Adam sobre nada

disso. Eu tinha dito a mim mesma que era porque não havia motivo para

anunciar quando eu sequer conseguir uma audição era difícil. Mas mesmo ali,

eu reconhecia aquilo pela mentira que era. Uma pequena parte de mim sentia

como se sequer se inscrever era um tipo de traição. Juilliard é em Nova Iorque.

Adam está aqui.

Mas não mais na escola. Ele estava um ano na minha frente, e este ano, meu

ultimo, ele começou a freqüentar a faculdade da cidade. Ele só ia para escola

meio período agora, porque Shooting Star está começando a ficar popular.

Havia um acordo com uma gravadora em Seattle, e muitas viagens para shows.

Então só depois que recebi o envelope creme escrito “A escola Juilliard” me

convidando para uma audição, que eu contei a Adam que eu tinha me inscrito.

Eu expliquei como muitas pessoas não chegavam tão longe. A principio ele

pareceu um pouco apavorado, como se ele não conseguisse acreditar. Então ele

me deu um pequeno sorriso triste. “É melhor Yo Mama se cuidar,” ele disse.

As audições foram feitas em São Francisco. Papai tinha uma conferencia da

escola aquela semana e não podia deixar de ir, e mamãe tinha acabado de

começar no seu trabalho para a agencia de viagens, então vovó se voluntariou

para me acompanhar. “Vamos fazer um final de semana de garotas. Tomar chá

em Fairmont. Ir fazer compras na Union Square. Andar de balsa até Alcatraz.

Seremos turistas.”

Mas uma semana antes de partimos, vovó tropeçou em uma raiz de arvore

e torceu seu tornozelo. Ela tinha que usar uma daquelas botas estranhas e não

deveria andar.

Pânico se instalou. Eu disse que poderia ir sozinha – dirigindo, ou pegar o

trem, e então voltar.

Foi vovô que insistiu em me levar. Andamos de carro juntos em uma picape.

Não conversamos muito, o que por mim estava bem porque eu estava tão

nervosa. Eu ficava cutucando meu talismã de palito de picolé que Teddy me

presenteou antes deu partir. “Quebre um braço,” ele me disse.

Vovô e eu ouvimos música clássica e noticiários no radio quando podíamos

escolher uma estação. Fora isso, ficamos em silencio. Mas era um silencio tão

calmo; me fez relaxar e me sentir mais próxima dele do que qualquer conversa

teria feito.

Vovô tinha reservado para nos uma pousada realmente cheia de babados, e

era engraçado ver vovô em suas botas de trabalho e flanela pot-pourri. Mas ele

agüentou tudo com classe.

A audição foi esgotante. Eu tinha que tocar 5 peças: um concerto de

Shostakovich, dois de Bach, todos os Pezzo Capriccioso de Tchaikovsky, o que

era quase impossível, e um movimento de Ennio Morricone The Mission, uma

divertida mas arriscada escolha porque Yo-Yo Ma tinha feito isso e todos iriam

comparar. Eu sai dele com minhas pernas tremulas e minhas exilas molhadas

de suor. Mas as endorfinas estavam surgindo e isso, combinada com um

enorme senso de alivio, me deixou totalmente alegre.

“Vamos ver a cidade?” vovô perguntou, seus lábios se torcendo num sorriso.

“Definitivamente!”

Fizemos todas as coisas que vovó tinha prometido que faríamos. Vovó me

levou para tomar chá e fazer compras, embora para jantar, tenhamos pulado as

reservas que vovó tinha feito em um lugar chique em Fisherman Wharf e fomos

para Chinatown, procurando pelo restaurante com a fila mais longe de pessoas

esperando, e comemos lá.

Quando voltamos para casa, vovó me largou e me deu um enorme abraço.

Normalmente, ele apertava a mão, talvez desse um tapinha nas costas em

ocasiões muito especiais. Seu abraço foi forte e apertado, e eu sabia que era o

jeito dele de me dizer que ele tinha se divertido muito.



“Eu também, vovô,” eu sussurrei.

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